Os segredos da secreção: o transporte das proteínas nas células
Autores
Jovens revisores
Resumo
A secreção é um processo básico no qual as células liberam substâncias para o ambiente externo. A secreção é imprescindível para muitas funções corporais, incluindo crescimento, digestão e comunicação celular. As proteínas devem passar por várias etapas dentro da célula para que possam ser secretadas, etapas que formam a chamada via secretora. Neste artigo, falaremos sobre a via secretora e as etapas pelas quais as proteínas passam desde sua produção até sua secreção. Depois, apresentarei o trabalho original que fizemos em laboratório para identificar genes relacionados com a via secretora nas células de levedura. Por fim, explicarei a importância de nosso trabalho para o estudo geral da via secretora, em células tanto de levedura quanto de mamíferos.
O professor Randy Schekman ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2013, juntamente com os professores James Rothman e Thomas Südhof, por suas descobertas de mecanismos que regulam o trânsito das vesículas, um importante sistema para transportar coisas em nossas células.
Os segredos da secreção
Nossos corpos são complexos e desempenham várias funções, muitas das quais exigem o transporte de substâncias de um lugar para outro. Um processo fundamental envolvido na movimentação de substâncias pelo corpo é chamado de secreção [1]. A secreção é a liberação controlada de substâncias do interior de uma célula para o sangue ou para outras células. Por exemplo, as células do trato digestivo secretam enzimas digestivas para ajudar a quebrar os alimentos que comemos, enquanto as células de nossas glândulas secretam hormônios que apoiam nosso crescimento e desenvolvimento. Outro tipo de secreção ocorre no cérebro, onde células nervosas secretam mensageiros chamados neurotransmissores para se comunicarem com outras células nervosas.
Antes que a substância seja secretada pela célula, é preciso que ela seja produzida no seu interior e depois levada para fora, através de uma membrana. Parece simples, não? Bem, esse processo é na verdade muito complexo.
Como você já deve saber, as células de todos os eucariontes, incluindo os humanos, são construídas em uma estrutura compartimentada e contêm vários “órgãos”, chamados organelas (Figura 1A). Cada organela desempenha determinadas funções e requer seu próprio ambiente especial para funcionar bem. Esse ambiente nem sempre é igual aos demais e às vezes compete com os ambientes de outras organelas ou outras áreas dentro das células. No entanto, cada organela é fechada por uma membrana que a separa do resto da célula. Essa membrana funciona como uma barreira que evita o trânsito livre de substâncias para dentro e para fora da organela, do mesmo modo que a membrana celular evita o movimento livre de substâncias para dentro e para fora das células.
Então, parece que temos aqui um problema: como as substâncias passam pelas membranas a fim de serem secretadas se a função dessas membranas é justamente impedir sua passagem? (Figura 1B)?
Mas há um mecanismo especial que permite o trânsito de substâncias entre organelas e para fora da célula. Esse mecanismo envolve pequenos transportadores chamadosvesículas, uma espécie de automóveis que levam o passageiro (a substância) até seu destino [1, 2]. Na próxima seção, falarei sobre como são produzidas e como atuam as vesículas envolvidas na secreção de moléculas chamadas proteínas, que são os “trabalhadores” responsáveis por muitos processos no corpo.
A via secretora das proteínas
Cerca de 30% das proteínas produzidas no corpo humano funcionam como secretoras, isto é, sua função é serem excretadas das células. Como todas as proteínas, as secretoras são produzidas em partículas semelhantes a máquinas de costura, chamadas ribossomos (o prêmio Nobel de Química de 2009 foi concedido a três pesquisadores que estudaram a estrutura e a função dos ribossomos).
Os ribossomos que produzem proteínas secretoras estão localizados em um canal especial na membrana de uma organela chamado retículo endoplasmático (RE). Depois que as proteínas secretoras são produzidas, elas passam por um canal embutido na membrana do RE até uma rede semelhante a um canal de túbulos do RE que estão espalhados pela célula. Lá, as chamadas proteínas de revestimento elaboram uma estrutura especial em uma pequena superfície da membrana do RE, em forma de cúpula.
Essa cúpula coleta as proteínas secretoras e depois expele pequenas esferas da membrana – as vesículas – que contêm a carga proteica secretora produzida na membrana do RE. Esse processo de formação de vesículas, graças ao qual parte da membrana do RE é expelida, chama-se brotamento [1, 2]. Após o brotamento, as proteínas do revestimento caem das vesículas e as vesículas nuas contendo as proteínas secretoras são passadas para uma organela chamada Complexo de Golgi. O Golgi classifica e direciona as vesículas de carga secretora para seu destino final – a membrana celular (também chamada de membrana plasmática). Na membrana plasmática, com a ajuda de proteínas adicionais (como a SNARE e a RAB), as vesículas passam pelas duas últimas etapas antes da secreção proteica – acoplamento e fusão [3].
Nessas etapas, as vesículas chegam muito perto da membrana em um alinhamento específico, e estruturas semelhantes a dedos nas vesículas e na membrana se entrelaçam, unindo as vesículas e a membrana, como se fosse um velcro. Quando uma vesícula e a membrana estão próximas o suficiente, elas se fundem de maneira espontânea, como duas bolhas de sabão. Então, a carga proteica secretora é liberada para o outro lado da membrana, fora da célula – um processo chamado de exocitose.
Como se vê, o processo de produção, transporte e secreção de proteínas é bastante complexo. Você pode imaginá-lo como uma fábrica de veículos, na qual o automóvel é montado peça por peça ao longo de uma linha de montagem antes de ser enviado para a loja. A “linha de montagem” das proteínas secretoras é chamada de via secretora [4] e o processo pelo qual as vesículas transportam substâncias entre os compartimentos da célula e para fora dela é chamado de tráfego de vesículas (Figura 2).
Você pode se surpreender ao descobrir que muitos dos mecanismos responsáveis pelo controle do tráfego de vesículas nas vias secretoras existem nas células há mais de 2 bilhões de anos! Isso significa que as células de nosso corpo, incluindo as células nervosas do cérebro, compartilham a maquinaria básica de secreção com organismos mais simples, como as leveduras [5, 6]. Na verdade, as primeiras descobertas sobre a maquinaria que opera a via secretora foram feitas com levedura [7–9]. Na próxima seção, falarei sobre as primeiras descobertas feitas com levedura em meu laboratório, pelas quais ganhei o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina.
A via secretora em uma levedura
Quando comecei a estudar a via secretora com meus alunos, havia algumas hipóteses sobre a maquinaria que controlava o tráfego de vesículas, mas ninguém tinha identificado os genes envolvidos nessa maquinaria. Acreditávamos que estudar os genes envolvidos na via secretora seria uma boa forma de aprender sobre o tráfego de vesículas. Optamos por trabalhar com fermento de padeiro, um micro-organismo simples usado na fabricação de pão e cerveja. A levedura de padeiro era atraente para nós porque poderíamos cultivá-la facilmente em laboratório e tínhamos técnicas simples para analisar com precisão seus genes.
Para identificar genes relacionados com a via secretora na levedura, expusemos as células da levedura a produtos químicos que causam alterações aleatórias no DNA, chamadas mutações. As mutações afetam um gene aleatoriamente, entre os 5.000, aproximadamente, que há nas leveduras. Como, então, conseguimos identificar um gene específico das vias secretoras nesse palheiro de genes?
Em primeiro lugar, sabíamos que estávamos procurando por genes essenciais, aqueles de que as células precisam para sobreviver. Sabíamos também que, se introduzíssemos uma mutação num gene essencial que inativasse completamente esse gene, a célula morreria e não teríamos nada com que trabalhar. Assim, precisávamos de algum modo introduzir uma mutação que permitisse à célula permanecer viva durante tempo suficiente para podermos estudá-la. Entre as muitas mutações que introduzimos aleatoriamente, algumas alteram acidentalmente a proteína codificada por esse gene, tornando-a instável à temperatura corporal humana. As células normais de levedura ficam bem à vontade na temperatura do corpo humano, mas essas mutações específicas só podem funcionar à temperatura ambiente e são chamadas de mutações letais sensíveis à temperatura [10].
Assim, utilizando mutações letais sensíveis à temperatura, poderíamos restringir nossa pesquisa a cerca de 1.5000 genes essenciais, em um total de 5.000 genes de levedura. Ainda é um número grande, por isso precisávamos de outro parâmetro para nos ajudar a encontrar os genes responsáveis pelo tráfego de vesículas.
Recorremos então, em nossa busca, a uma hipótese levantada por George Palade, um ganhador do prêmio Nobel e pioneiro no estudo da via secretora. Palade aventou que a secreção está ligada ao crescimento celular por meio da fusão de vesículas. Essa é uma suposição lógica porque, quando as vesículas se fundem com a membrana plasmática, esta deve ficar maior. Isso nos permitiu utilizar outro parâmetro de pesquisa em nosso estudo: procurávamos mutações que impedissem o crescimento das células de levedura e que também provocassem a acumulação de proteínas secretoras no interior das células.
Especificamente, procuramos pelo acúmulo de uma proteína chamada invertase, a enzima que quebra a sacarose (açúcar de mesa) em açúcares menores – frutose e glicose. Normalmente, a invertase é encontrada na parede celular das células de levedura; portanto, quando o processo de secreção funciona bem, esperamos ver a mesma quantidade de frutose e produtos de glicose quando incubamos células inteiras em sacarose, assim como fazemos quando quebramos as células e incubamos os pedaços em sacarose. Mas, caso o processo de secreção não funcione bem e a invertase se acumule dentro das células, devemos obter uma quantidade maior de frutose e glicose quando incubamos as células rompidas. Esse é o resultado exato que obtivemos em um experimento, liderado por meu brilhante aluno Peter Novick, publicado em 1979 [7].
Chamamos o gene que foi alterado por essa mutação de sec1. Quando examinamos as células com sec1 alterado, usando um poderoso microscópio chamado microscópio eletrônico, vimos que muitas vesículas contendo invertase tinham se acumulado dentro da célula (Figura 3A). Isso foi muito emocionante – pela primeira vez, observava-se uma acumulação de vesículas dentro de uma célula. Essa descoberta também forneceu fortes evidências para apoiar a hipótese de George Palade segundo a qual a secreção e o crescimento celular estão relacionados. A partir daí, tivemos que continuar trabalhando para compreender a função específica que a proteína sec1 (produzida graças às instruções do gene sec1) desempenhava no trânsito de vesículas.
Por fim, descobrimos que a proteína sec1 participa da etapa final do processo de secreção, isto é, acoplamento e fusão. Logo depois que identificamos a mutante sec1, identificamos mais mutantes envolvidas no processo de secreção da levedura [8] e começamos a entender a ordem dos eventos que ocorrem na via secretora da levedura [9].
Nossas descobertas de genes envolvidos na via secretora da levedura também aumentaram a compreensão de como esse processo ocorre em mamíferos, incluindo humanos [6]. Mais especificamente, constatou-se que muitos dos genes e proteínas que descobrimos tinham contrapartidas em células de mamíferos. Um dos principais cientistas que encontraram algumas das contrapartidas dos genes por nós descobertos é o professor James Rothman, com quem compartilhei o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2013. Depois de ganhar esse prêmio, pude até conhecer meu ídolo de basquete, Kareem Abdul Jabbar! (Figura 3B).
Nosso trabalho foi pioneiro por dois motivos: em primeiro lugar, devido às descobertas específicas de genes envolvidos na via secretora; em segundo, devido ao nosso novo e bem-sucedido uso da genética microbiana para estudar a via secretora. Nossas descobertas abriram uma nova linha de pesquisas, que muitos dos meus alunos e seus alunos seguiram durante anos. Depois que a via secretora na levedura foi bem entendida, as pessoas começaram a usar esse conhecimento para aplicações médicas. Um exemplo importante, do qual participei, é o uso da via de secreção de levedura para produzir insulina humana a fim de tratar o diabetes [10]. Como a secreção é um processo fundamental no corpo humano, há muitos outros exemplos de condições médicas que podem ser tratadas com base em nossa crescente
compreensão da via secretora – como doenças cardíacas e problemas digestivos. Embora eu nunca tenha pretendido participar do desenvolvimento de aplicações médicas, o fato de nosso trabalho contribuir para tratamentos que ajudem pessoas em todo o mundo me deixa muito satisfeito.
Recomendações para Mentes Jovens
Penso que uma das características mais fundamentais que um cientista deve possuir e tentar desenvolver é o entusiasmo pela descoberta. Na minha visão, a ciência é o processo da descoberta – não apenas uma lista de fatos sobre o que já é conhecido e estabelecido. Se você tem paixão pela ciência, deve descobrir uma forma independente de explorá-la – não se limitar ao material que aprende na aula.
Quando se trata de expandir o conhecimento, acredito que o estudo independente, como o que se faz em laboratório, é tão importante quanto a leitura de livros didáticos. Para entender se pode ser um bom cientista pesquisador, você mesmo deve experimentar a pesquisa. A pesquisa é frequentemente decepcionante – muita coisa falha e é preciso aprender a perseverar diante do fracasso. Você só pode se preparar para isso experimentando, em primeira mão, pesquisas de laboratório. É assim também que conseguirá desenvolver a confiança em si mesmo e em suas habilidades: isso lhe permitirá acreditar que as coisas darão certo e você alcançará seu objetivo, mesmo quando o processo for muito complicado. Por essa razão é que aconselho todo jovem estudante a iniciar logo suas atividades no laboratório ou empreender alguma forma de estudo independente.
Outro aspecto do bom cientista é a capacidade de escolher um problema de estudo interessante e se comprometer totalmente com ele. Isso significa que você deve manter-se focado em um problema específico, pensando independentemente sobre o projeto e a execução dos experimentos, a observação ou a teoria que o ajudem a resolvê-lo. Mesmo que enfrente desafios ao longo do caminho, reflita constantemente sobre eles até encontrar uma nova maneira de abordá-los. Sei que o foco pode ser difícil, especialmente para pessoas criativas que têm muitas ideias o tempo todo. Mas nós só dispomos de uma quantidade limitada de tempo e energia, e, se não nos concentrarmos, não seremos capazes de fazer progressos. Portanto, meu conselho é: mantenha-se concentrado em seu objetivo e persevere até encontrar solução para o importante problema ao qual resolveu se dedicar.
Glossário
Secreção: Processo crítico pelo qual as células liberam substâncias, tais como hormônios e enzimas, de uma maneira controlada.
Eucariontes: Organismos cujas células contêm um núcleo.
Vesículas: Sacos membranosos que carregam substâncias dentro da célula.
Retículo endoplasmático (RE): Organela na qual proteínas secretoras são produzidas e colocadas nas vesículas.
Brotamento: Processo pelo qual parte da membrana do RE é arrancada e forma uma vesícula.
Exocitose: Processo pelo qual uma substância é liberada do interior da célula para o ambiente externo, após a fusão de uma vesícula com a membrana plasmática celular.
Via secretora: Caminho usado para secretar proteínas de dentro da célula para o ambiente externo. Inclui organelas como o RE e o complexo de Golgi, bem como as vesículas e a membrana celular.
Tráfego de vesícula: Processo pelo qual a vesícula carrega substâncias entre compartimentos das células e entre as células e seu ambiente externo.
Mutações letais sensíveis à temperatura: Células que atuam normalmente a baixas temperaturas, mas morrem a altas temperaturas.
Parede celular: Camada mais externa da célula que cobre a membrana celular.
Referências
[1] Jena, B. P. 2007. “Secretion machinery at the cell plasma membrane.” Curr. Opin. Struct. Biol. 17:437–43.? DOI: 10.1016/j.sbi.2007.07.002.
[2] Schekman, R. e Orci, L. 1996. “Coat proteins and vesicle budding.” Science 271:1526–33. DOI: 10.1126/science.271.5255.1526.
[3] Verhage, M. e Sørensen, J. B. 2008. “Vesicle docking in regulated exocytosis.” Traffic 9:1414–24. DOI: 10.1111/j.1600-0854.2008.00759.x.
[4] Shikano, S. e Colley, K. J. 2013. “Secretory pathway”, em Encyclopedia of Biological Chemistry, org. J. Jez (Nova York, NY: Elsevier), pp. 20–9. DOI: 10.1016/b978-0-12-378630-2.00507-7.
[5] Bennet, M. K. e Scheller, R. H. 1993. “The molecular machinery for secretion is conserved from yeast to neurons.” Proc. Natl. Acad. Sci. 90:2559–63. DOI: 10.1073/pnas.90.7.2559.
[6] Rothman, J. E. e Orci, L. 1992. “Molecular dissection of the secretory pathway.” Nature 355:409–15. DOI: 10.1038/355409a0.
[7] Novick, P. e Schekman, R. 1979. “Secretion and cell-surface growth are blocked in a temperature-sensitive mutante of Saccharomyces cerevisiae.” Proc. Natl. Acad. Sci. 76:1858–62. DOI: 10.1073/pnas.76.4.1858.
[8] Novick, P., Field. C. e Schekman, R. 1980. “Identification of 23 complementation groups required for post-translational events in the yeast secretory pathway.” Cell 21:205–15. DOI: 10.1016/0092-8674(80)90128-2.
[9] Novick, P., Ferro, S. e Schekman, R. 1981. “Order of events in the yeast secretory pathway.” Cell 25:461–9. DOI: 10.1016/0092-8674 (81)90064-7.
[10] Schekman, R. A. N. D. Y. 2013. Genes and Proteins That Control the Secretory Pathway. Nobel Lecture, 7.
Citação
Schekman, R. (2023). “The secrets of secretion: protein transport in cells.” Front. Young Minds. 11:1063926. DOI: 10.3389/frym.2023.1063926.
Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos da Creative Commons Attribution License (CC BY). O uso, distribuição ou reprodução em outros fóruns é permitido, desde que o(s) autor(es) original(is) e o(s) proprietário(s) dos direitos autorais sejam creditados e que a publicação original nesta revista seja citada, de acordo com a prática acadêmica aceita. Não é permitido nenhum uso, distribuição ou reprodução que não esteja em conformidade com estes termos.
Encontrou alguma informação errada neste texto?
Entre em contato conosco pelo e-mail:
parajovens@unesp.br