Neurociências e Psicologia 27 de abril de 2022, 11:33 27/04/2022

A prosódia da fala: o aspecto musical e mágico da fala

Autores

Jovens revisores

Ilustração de um menino vestindo um chapéu de mágico pronunciando a palavra mágica

Resumo

Quando falamos, podemos variar o modo como usamos nossa voz. Nossa fala pode ser alta ou baixa (a chamada variação de pitch), forte ou fraca (variação de intensidade) e rápida ou lenta (variação de duração). Essa variação em pitch (termo que pode ser livremente traduzido como “altura”), intensidade e duração se chama prosódia da fala. É mais ou menos como fazer música. O ato de variar a voz ao falar pode exprimir sarcasmo ou emoção, e até alterar o significado do que estamos dizendo. Portanto, a prosódia da fala é uma parte importantíssima da linguagem oral. Mas de que modo os falantes produzem prosódia? Como os ouvintes escutam e entendem essas variações? É possível escutar e interpretar prosódia em outras línguas? E que dizer das pessoas que não têm uma boa audição? Afinal, eles conseguem escutar e entender padrões prosódicos? Vamos descobrir!

Durante seu primeiro ano na escola Hogwarts, Harry Potter e seus amigos aprenderam o feitiço de levitação “Wingardium Leviosa”. Ao praticar, o melhor amigo de Harry, Ron, não conseguia fazer com que a pena em sua carteira obedecesse a seu comando e flutuasse no ar. Hermione sabe exatamente por quê: “Você está pronunciando errado. É Levi-o-sa, não Levio-sa”. “Então faça você, já que é tão esperta. Vamos, vamos!”, desafia Ron. Com um abanar de mão e um movimento de sua varinha mágica, Hermione pronuncia o feitiço: “Win-gar-dium Levi-o-sa!” – e sua pena lentamente se ergue da carteira. Assim, o feitiço da levitação só funciona quando você pronuncia corretamente as palavras mágicas. Ou seja, o que você diz importa, mas como você diz faz uma grande diferença. Na verdade, Hermione usa a prosódia da fala para convencer sua pena a erguer-se no ar.

O que é a prosódia da fala?

A prosódia da fala é muitas vezes descrita como a qualidade musical da fala [1]. Se as vogais e consoantes são os sons da língua constitutivos do que você fala, então a prosódia diz respeito a como você emite esses sons. Quando Hermione corrige a pronúncia de Ron, não corrige nenhuma vogal ou consoante. Com efeito, as vogais e consoantes em “Levi-o-sa” e “Levio-sa” são as mesmas. O que Hermione corrige é, na verdade, o chamado padrão acentual. Ron acentua erroneamente o “sa” em “Leviosa”, quando deveria acentuar o “o”. Sem o acento correto, as palavras “Wingardium Leviosa” perdem o sentido pretendido e o feitiço da levitação não funciona.

Mas você poderá pensar: “Bom exemplo. Entretanto, as histórias de Harry Potter são ficções e ninguém consegue fazer um objeto voar”. Isso pode ser verdade, mas a prosódia da fala funciona igualmente bem em nosso mundo trouxa. Você já pensou em como o termo “objeto” pode ser pronunciado de duas maneiras? Quando mencionamos “objeto” (object, em inglês), algumas sentenças acima, empregamos o substantivo referente a uma coisa que pode ser vista e tocada. Nesse contexto, a palavra inglesa seria pronunciada “ob-ject”, com acento na primeira sílaba; mas, se o acento estivesse na segunda, a palavra assumiria outro sentido: o verbo inglês “ob-ject” exprime discordância. Assim, Hermione “ob-jects” (objeta) ao modo como Ron pronuncia o feitiço de levitação. De modo que, apenas modificando o acento, a palavra muda de substantivo para verbo. Isso realmente é mágica!

Porém, a prosódia da fala não é apenas mudança de padrão acentual. Quando falamos, são prosódicas todas as coisas que fazemos com a voz sem relacioná-las diretamente à pronúncia de vogais e consoantes. Por exemplo, o ritmo e a entonação da fala. A prosódia torna a fala menos monótona e sem graça. Podemos até alterar o sentido de toda uma frase pondo a ênfase em diferentes palavras! É possível também fazer uma frase soar sarcástica ou transformar histórias alegres em tristes, apenas modificando o tom da voz. Ou transformar uma afirmação numa pergunta. Tente pronunciar esta frase em voz alta: “Vejo você amanhã!” Repita-a em seguida, mas transformando-a em uma pergunta: “Vejo você amanhã?” Percebeu que o pitch da sua voz sobe um pouco no final? Isso é a prosódia da fala!

Como usamos e compreendemos a prosódia?

Ao falar, podemos variar (e variamos!) o tom de nossa fala: alta ou baixa, forte ou fraca, rápida ou lenta. Essa variação em pitch, intensidade e duração é o que gera padrões prosódicos de fala [1]. Todas as pessoas usam prosódia quando falam. Mesmo Ron faz isso quando diz “Levio-sa”, pronunciando “sa” em tom ligeiramente mais alto, mais forte ou mais lento que o das outras partes da palavra. Compare essa pronúncia à de Hermione quando diz “Levi-o-sa”. Ela pronuncia o “o” em tom mais alto, mais forte e mais lento que o das outras partes da palavra (Figura 1). Qualquer que seja o padrão prosódico, ele é sempre descrito em termos de aumento ou diminuição relativos em pitch, intensidade e duração.

Figura 1: As diferentes pronúncias de “Wingardium Leviosa” visualizadas de duas maneiras. O formato de onda da fala (em cima) mostra a intensidade gravada no tempo e o espectograma (embaixo) mostra a intensidade em diferentes frequências no tempo. No espectograma, as linhas azuis mostram a frequência da voz relacionada ao pitch percebida e as linhas amarelas mostram a intensidade relacionada à potência percebida. Pode-se ver, em A, que o “o” é mais alto (azul) e mais forte (amarelo) que as outras partes de “Levi-o-sa”; e que, em B, o “sa” é mais alto (azul) e mais forte (amarelo) que as outras partes de “Levio-sa”.

Quando ouvimos uma fala, geralmente percebemos a variação em altura, intensidade e duração produzida pelo falante. Esses padrões prosódicos nos ajudam a entender o que está sendo dito [2].

Com o tempo, aprendemos a reconhecer padrões prosódicos comumente usados e atribuímos significados a eles. Por exemplo, quando você era bem jovem, aprendeu que alguém estava fazendo uma pergunta quando a voz dele alcançava maior altura no final da frase. Entretanto, nem sempre você se dá conta dessas conexões. Como “trouxa” que é, talvez nunca tenha notado a importância do padrão acentual em “Levi-o-sa”, pois essas palavras mágicas carecem de função no mundo dos “trouxas”. Ron, ao contrário, precisa aprender o acento correto caso queira fazer com que objetos voem. Na qualidade de mago, ele tem de estabelecer a conexão entre o padrão acentual “Levi-o-sa” e sua função, ou seja, proferir um feitiço de levitação eficiente.

Como a língua materna influencia a prosódia?

Quando Harry, Ron e Hermione estavam no quarto ano, alunos de Durmstrang e Beauxbatons visitaram Hogwarts para participar do Torneio Triwizard. Esses estudantes internacionais falavam inglês, mas o inglês não era sua língua nativa. Imagine agora que Hermione decidisse ensinar a um deles o feitiço da levitação. Você talvez pense que a diferença entre “Levi-o-sa” e “Levio-sa” seria óbvia para todos, mas, na verdade pessoas que falam outra língua às vezes não conseguem perceber essa diferença tão facilmente quanto você ou Ron. Isso ocorre porque nem todas as línguas empregam os mesmos padrões prosódicos.

Você já notou, por exemplo, que o inglês ou o alemão soam muito diferente do francês ou do italiano? Vimos que, em inglês, uma palavra pode mudar de significado caso alteremos o padrão acentual (como em “ob-ject” e “ob-ject”); todavia, em outras línguas, o padrão acentual é sempre fixo. Em francês, por exemplo, o acento recai sempre na parte final da palavra. Assim, Fleur, uma aluna da escola francesa de magia Beauxbatons, diria provavelmente “Levio-sa”, como Ron.

Mas a pergunta é: Fleur perceberia que a pronúncia correta tem um padrão acentual diferente? Os ouvintes tendem a apegar-se àquilo que conhecem e sua língua materna pode influenciar o modo como percebem a fala em outro idioma. Se Fleur ouvisse Hermione ensinando-lhe a pronúncia, talvez conseguisse notar que “Levi-o-sa” é diferente de “Levio-sa”, mas com certeza não se daria conta de quão importante é o contraste de acento para o significado da palavra, pois contrastes de acento não existem em francês. Portanto, não reconheceria o contraste de acento pelo que ele é [3]. Mas não se preocupe, ela ainda aprenderá a reconhecê-lo – e se alguém pode lhe ensinar isso, é Hermione!

Até que ponto a qualidade de nossa audição influencia a percepção da prosódia?

Uma boa audição é importante para o entendimento da prosódia. Para começar, seria difícil associar um padrão prosódico a sua função se não pudéssemos ouvir esses padrões. É o caso das pessoas que ouvem muito pouco ou são completamente surdas. Felizmente, um recurso chamado implante coclear (Figura 2) pode devolver parte da audição a elas. O cirurgião implanta um fio com pequenos eletrodos na região do ouvido interno chamada cóclea. É ali que ouvidos saudáveis transformam ondas sonoras em sinais elétricos que são depois enviados ao cérebro via nervo auditivo. Para os ouvintes com implantes cocleares, a transformação das ondas sonoras em sinais elétricos acontece no aparelho e os eletrodos mandam esses sinais diretamente para o nervo auditivo. A audição por meio do implante coclear é às vezes chamada de audição elétrica.

Até certo ponto, o fato de esse aparelho conseguir devolver parte da audição é pura magia, mas ele não é perfeito. Os ouvintes com implantes cocleares só com muita dificuldade captam diferenças de pitch [4]. Se Ron usasse um desses aparelhos, seria um problema para ele perceber que Hermione pronunciou o “o” ligeiramente mais alto do que o resto da palavra. Mas, ainda assim, conseguiria ouvi-lo tão forte e longo quanto foi pronunciado, de modo que, com a prática, havia uma chance de perceber a ênfase correta. Com o tempo, talvez pudesse também entender o padrão prosódico baseado no que conseguia ouvir, embora com mais dificuldade do que se sua audição não estivesse prejudicada.

Figura 2: Ouvido com implante coclear. O fio com eletrodos é implantado na cóclea, que tem formato espiral (a parte azul, parecida a um caramujo). Os eletrodos do implante coclear enviam sinais elétricos semelhantes a sons diretamente ao nervo auditivo. As linhas amarelas presas à cóclea são parte do nervo auditivo, que leva os sinais elétricos ao cérebro. (Crédito da imagem: https://media.healthdirect.org.au/images/inline/original/cochlear-implant-illustration-445004.jpg). 

Qual é a magia da prosódia da fala?

O fato de que a prosódia da fala pode fazer objetos voarem é algo realmente mágico. Mas você sabe o que é mais mágico ainda? Você saber, agora, que a prosódia da fala é muito importante! É como se você estivesse esperando por uma carta da Hogwarts avisando que foi admitido na escola de magos para, enfim, aprender os poderes mágicos da prosódia da fala. Ela chegou. Sim, a carta chegou. O que você está esperando? Prepare-se para, em breve, correr ao mundo dos trouxas e usar sua mágica da prosódia da fala!

Glossário

Prosódia da fala: A qualidade musical da fala, como acento, ritmo e entonação. Pode exprimir sarcasmo e emoções ou até alterar o sentido da fala.

Padrão acentual: O modo como partes de uma palavra ou frase são enfatizadas ou atenuadas. A ênfase ocorre pelo aumento relativo da altura, intensidade e duração.

Ritmo: A organização estrutural das partes da fala no tempo, como as batidas de uma canção. Em geral, a fala tem um ritmo facilmente perceptível.

Entonação: O modo como a altura varia no tempo, tal qual a melodia de uma canção.

Pitch: Característica da fala como alta ou baixa. O que ouvimos como pitch pode ser medido como a frequência de uma voz – quando a frequência aumenta, aumenta também a altura percebida.

Intensidade: Característica da fala como forte ou fraca. O que ouvimos como intensidade pode ser medido como a potência de uma voz – quando a potência aumenta, aumenta também a intensidade percebida.

Duração: Característica da fala como rápida ou lenta. A duração da fala é medida pelo tempo despendido em sua emissão.

Implante coclear: Aparelho eletrônico que pode devolver a audição a pessoas surdas. Usa eletrodos para enviar sinais elétricos semelhantes a sons diretamente ao nervo auditivo.

Agradecimentos

Este projeto contou com o apoio do Center for Language and Cognition Groningen (CLCG) e a subvenção VICI 918-17-603 da Netherlands Organization for Scientific Research (NWO) e da Netherlands Organization for Health Research and Development (ZonMw). Auxílio extra foi concedido pela Heinsius Houbolt Foundation. Agradecemos a Caryl Hart por sua colaboração no rascunho inicial do manuscrito.

Referências

[1] Cole, J. 2015. “Prosody in context: a review.” Lang. Cogn. Nurosci. 30:1 – 31. DOI: 10.1080/23273798.2014.963130.

[2] Cutler, A., Dahan, D. e van Donselaar, W. 1997. “Prosody in the comprehension of spoken language: a literature review.” Lang. Speech 40:141 – 201. DOI: 10.1177/002383099704000203.

[3] Dupoux, E., Peperkamp, S. e Sebastián-Gallés, N. 2001. “A robust method to study stress ‘deafness’.” J. Acoust. Soc. Am. 110:1606 – 18. DOI: 10.1121/1.1380437.

[4] Everhardt, M. K., Sarampalis, A., Coler, M., Başkent, D. e Lowie, W. 2020. “Meta-analysis on the identification of linguistic and emotional prosody in cochlear implant users and vocoder simulations.” Ear. Hear. 41:1092 – 102. DOI: 10.1097/AUD. 0000000000000863.

Citação

Everhardt, M., Sarampalis, A., Coler, M., Başkent, D. e Lowie, W. (2022). “Speech Prosody: The Musical, Magical Quality of Speech.” Front. Young Minds. 10:698575. DOI: 10.3389/frym.2021.698575.

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