Neurociências e Psicologia 23 de janeiro de 2024, 16:47 23/01/2024

Autofala: as conversas que os atletas têm consigo mesmos

Autores

Jovens revisores

Ilustração de dois homens envolvidos em uma partida de basquete em um campo aberto. Um dos jogadores está prestes a realizar um arremesso, enquanto acima de seu ombro, uma versão sua reduzida em um anjinho, demonstra aprovação.

Resumo

A autofala é uma característica exclusivamente humana e representa uma grande diferença para o nosso desempenho, principalmente no esporte. Pesquisadores da psicologia do esporte estudaram a autofala e descobriram que os atletas costumam usá-la para expressar o que estão vivenciando nos aspectos mental e emocional. Essa possibilidade leva a atenção dos atletas para qualquer coisa negativa que estejam pensando ou sentindo. Uma vez que estejam conscientes do que está acontecendo, os atletas podem tentar se livrar dos pensamentos negativos para melhorar seu desempenho. Como isso é muito difícil, os psicólogos da área esportiva têm desenvolvido treinamentos que ajudam os atletas a conversar consigo mesmos de forma mais eficaz. Além disso, desenvolveram técnicas graças às quais os atletas repetem palavras-chave que os ajudam a aprender mais rapidamente, a controlar suas emoções ou a aumentar sua motivação. No geral, a pesquisa mostrou que a autofala é importante para o autocontrole, pode ser melhorada e, na forma de palavras-chave, aumenta a atenção, a motivação e o desempenho.

A autofala nos torna humanos

Um comportamento que torna certos atletas melhores do que os outros é, também, um comportamento exclusivamente humano. Há várias coisas que tornam os humanos diferentes dos outros animais, e uma delas é o fato de que conversam consigo mesmos! Chamamos isso de autofala, e tem sido objeto de intenso estudo na psicologia do esporte porque é essencial para ajudar os atletas a terem um melhor desempenho. Os psicólogos do esporte definem a autofala como palavras ou frases ditas para nós mesmos, em voz alta ou que só nós possamos ouvir [1]. 

A autofala é classificada em vários tipos [2]. A autofala espontânea é um eco de quem somos e de como nos sentimos. Às vezes, apenas dizemos coisas para nós mesmos como: “Por que sou tão esquecido?” ou “Estou com tanta raiva!” para refletir aspectos de nossa personalidade ou as emoções que sentimos.

Já a autofala propositada não é espontânea – é uma ferramenta mental que usamos para resolver problemas e melhorar nosso desempenho. Dizemos conscientemente coisas como: “respire fundo” para ficar menos nervosos em situações difíceis. Isso é algo natural, que todos fazemos! Às vezes, os psicólogos do esporte também pedem aos atletas que repitam palavras-chave ou frases como “Joelhos dobrados” ou “Eu consigo” a fim de melhorar seu desempenho. Essa autossugestão não é um reflexo de nossos pensamentos, como a autofala espontânea ou a propositada, mas sabe-se que influencia tanto nosso pensamento quanto nossa motivação. 

A autofala espontânea: se é o que você diz, é o que você sabe

Por meio da autofala, conseguimos saber quem somos, o que pensamos e como nos sentimos. Se eu lhe perguntar por que você gosta ou não gosta de velejar, é muito improvável que consiga formar uma opinião sem falar. Pode conversar com outros para formar sua opinião, mas pode também conversar consigo mesmo. Atletas, frequentemente, conversam consigo mesmos quando estão sozinhos, quando praticam seus esportes ou quando não desejam compartilhar pensamentos e sentimentos com os outros. Essa autofala natural geralmente descreve o estado mental e físico do atleta “(Estou muito cansado)” ou seus pensamentos e sentimentos sobre as coisas (“Prefiro jogar de manhã do que de noite)”. (Figura 1A). 

Figura 1. (A) A autofala espontânea reflete nossos atuais pensamentos e sentimentos. Joãozinho se sente um pouco abatido e conversar sozinho de modo espontâneo atua como um espelho que reflete seus sentimentos e pensamentos. (B) A autofala propositada é uma espécie de “técnico interno”. Com ela, Joãozinho pretende fortalecer sua autoconfiança e minimizar suas dúvidas. 

Embora os atletas não costumem usar a autofala espontânea de forma consciente, ela pode ser útil porque lhes permite descobrir quem são e como se sentem. Uma vez sabendo disso, podem identificar desafios mentais e tentar resolvê-los. Por exemplo, um jovem atleta se sente cansado demais para ir treinar depois da escola. Esse sentimento cresce dentro dele até explodir na forma de uma autoafirmação como: “Realmente, não estou com vontade de treinar hoje!” Uma autofala como essa nos conscientiza de nossos desafios mentais e pode ajudar os atletas a aumentar sua motivação por meio de um processo chamado autocontrole. 

Autofala propositada: a equipe interior

Às vezes, nós também conversamos sozinhos para mudar nosso humor e melhorar nosso desempenho. Essa autofala propositada é intencional e importante, portanto diferente da autofala espontânea, que descreve quem somos e como nos sentimos (Figura 1B). De certo modo, todos temos nossa equipe interior: uma parte da mente é um psicólogo que nos ajuda a lidar com as emoções, enquanto outra é um técnico ou um professor que nos ensina coisas novas. As vozes de nossos técnicos, professores ou psicólogos interiores procuram nos motivar, acalmar nossos nervos, animar-nos, mostrar-nos onde erramos e ajudar-nos a encontrar melhores soluções para o futuro. 

No entanto, é importante dar bons conselhos e orientações a nós mesmos – nossas vozes interiores nem sempre estão certas. Às vezes, não ligamos para nossa autofala espontânea ou identificamos incorretamente o problema subjacente. A voz interior pode também nos dar um mau conselho, como quando um atleta diz para si mesmo que “tem de vencer”. Melhor seria dizer “farei o possível”. Não raro, a voz interior insiste em tentar instruir e guiar, embora devesse ficar quieta por um tempo. Assim, muitos atletas precisam aprender a conversar consigo mesmos da maneira certa, recorrendo à autofala propositada a fim de usar essa habilidade quando os conselhos dos técnicos ou de outros não estiverem disponíveis. 

Aprenda a conversar com você mesmo

No curso de nossas vidas, aprendemos a conversar com os outros. Não conversamos com nossos amigos do mesmo modo que conversamos com nossos professores e mudamos a maneira de conversar quando os outros estão felizes ou tristes. No entanto, a maioria das pessoas não foi ensinada especificamente a conversar consigo mesmas [3]. Por isso, psicólogos dos esportes elaboraram técnicas de autofala educativas para mostrar aos atletas como devem se comunicar proveitosamente com sua própria consciência [4]. Nessas técnicas, os atletas primeiro aprendem a ouvir sua autofala espontânea. Ouvir a nós mesmos revela como estamos e quais são nossos desafios mentais ou emocionais específicos num dado momento. Em segundo lugar, os atletas aprendem quando e como devem conversar consigo mesmos, e o que convém dizer a si próprios. 

Os psicólogos dos esportes pedem aos atletas para se lembrarem do que disseram a si mesmos no passado a fim de superar um desafio. Por exemplo, um jogador de futebol profissional reconheceu que ficava irritado quando tinha um desempenho ruim. Dizia então a si mesmo: “Grandes jogadores sempre vencem e nunca ficam zangados”. Depois de lembrar o que costumavam dizer a si mesmos, os atletas são instados a explorar outras maneiras de fazer isso. Ao jogador de futebol se perguntou o que diria à sua irmãzinha caso ela enfrentasse o mesmo problema. Resposta: “Você não pode vencer sempre e é normal zangar-se de vez em quando”. Então, os psicólogos do esporte aconselharam-no a usar essa mesma abordagem em seu caso. Ele finalmente deixou de insistir em querer ser sempre perfeito e aceitou a raiva como parte de sua ambição.

Essa autoaceitação o ajudou a superar a raiva e ele se tornou um jogador até melhor. Técnicas como essas podem ajudar atletas a mudar sua autofala e a se tornar melhores psicólogos, professores e técnicos para si mesmos (Figura 2). 

Figura 2. Um exemplo de técnica de autofala para ensinar atletas a conversar consigo mesmos de um modo mais saudável. (A) Miguel, um atleta, se encontra com Ana, uma psicóloga do esporte, para discutir sua autofala. Eles decidem analisar a raiva de Miguel. (B) Ana pergunta a Miguel se ele usa a autofala propositada para controlar sua raiva. (C) Miguel percebe que sua autofala não o está ajudando em nada. (D) Ana orienta Miguel a tentar um estilo alternativo de autofala para combater sua raiva. 

Autossugestão, um modo de aprender e ficar animado

Embora as técnicas de autofala descritas na seção anterior possam ter um impacto grande e duradouro nos atletas, elas têm uma deficiência: precisam de tempo para funcionar. 

Às vezes, os atletas enfrentam problemas urgentes que exigem soluções imediatas e há outra técnica de autofala que ajuda. Eles podem usar dicas curtas de autofala enquanto tentam melhorar seu desempenho [5]. Imagine que você deseje aprender a jogada de forehand no tênis. Como é importante sempre olhar para a bola e acertá-la por baixo, um roteiro de autofala pode instruí-lo a dizer “bola” quando ela sair da raquete do treinador e “para cima” quando você a golpear com a sua. A ciência provou que o aprendizado acontece mais rápido com esse tipo de autossugestão. 

Outra técnica de autossugestão envolve roteiros de autofala projetados para estimular a motivação, controlar as emoções e aumentar a confiança. Imagine que você deva executar um lance livre crítico de basquete na frente de toda a escola, mas está nervoso e sentindo muita pressão. Um roteiro de autofala pode instruí-lo a dizer: “Você é o melhor!” enquanto avança para a linha e “Relaxe!” momentos antes de atirar a bola. Esses roteiros motivacionais de autofala costumam melhorar o desempenho em situações estressantes. Todas as técnicas de autossugestão podem ter efeitos imediatos, embora seja aconselhável praticar com palavras-chave no treinamento antes de usá-las nas competições. Você talvez escolha as palavras-chave erradas no início, mas, com a prática, os roteiros de autossugestão vão ajudá-lo a atingir seus objetivos esportivos (Figura 3). 

Figura 3. Um exemplo de técnica de autossugestão em que palavras-chave são escolhidas e usadas para ajudar no aprendizado e melhorar o desempenho. (A, B) João, jogador de basquete, e Jane, psicóloga do esporte, usam uma técnica de autossugestão durante o treinamento. Eles primeiro analisam o que João precisa realizar e o que ele deve fazer para alcançar seu objetivo. (C, D) João escolhe algumas palavras-chave, descobre as que funcionam melhor e pratica-as por um longo tempo. 

Conclusão

Os atletas de elite confiam em sua autofala natural para se compreender e enfrentar desafios mentais e emocionais. É por isso que muitos psicólogos e treinadores esportivos ensinam os atletas a falarem consigo mesmos de maneira mais saudável. Além disso, os atletas usam a autossugestão para melhorar seu desempenho. 

No entanto, a autofala não é praticada apenas por atletas – todos os humanos a praticam. Nossa autofala nos define e aprofunda o conhecimento de quem somos, além de nos remodelar para nos tornarmos as pessoas que queremos ser. Aprender sobre a autofala saudável pode nos ajudar a alcançar um excelente desempenho em muitos aspectos de nossas vidas, incluindo escola, trabalho e, claro, esportes! 

Glossário

Autofala: Palavras ou frases dirigidas a nós mesmos, ditas em voz alta ou silenciosamente. 

Autofala espontânea: Aquela que ocorre involuntariamente e por meio da qual expressamos pensamentos e emoções como esperança (“Espero ganhar!”) ou medo (“Será que vou fazer papel de bobo?”). 

Autofala propositada: Aquela que é usada como ferramenta para resolver problemas (“Pare de olhar para a torcida e você se acalmará.”) ou melhorar o desempenho (“Corra para chutar a bola!”). 

Autossugestão: Uso de palavras-chave para aumentar a motivação (“Você consegue!”) ou fornecer instruções (“Concentre-se na bola!”). 

Autocontrole: Capacidade de regular as emoções, pensamentos e atitudes diante de tentações e impulsos. 

Referências

[1] Hardy, J. 2006. “Speaking clearly: a critical review of the self-talk literature.” Psychol. Sport Exerc. 7:81–97. DOI: 10.1016/j.psychsport.2005.04.002.

[2] Latinjak, A. T., Hatzigeorgiadis, A., Comoutos, N. e Hardy, J. 2019. “Speaking clearly… 10 years on: the case for an integrative perspective of self-talk in sport.” Sport Exerc. Perform. Psychol. 8:353–67. DOI: 10.1037/spy0000160.

[3] Winsler, A. 2009. “Still talking to ourselves after all these years: a review of current research on private speech.” Em Private Speech, Executive Functioning, and the Development of Verbal Self-Regulation, orgs. A. Winsler, C. Fernyhough e I. Montero (Cambridge: Cambridge University Press), pp. 3–41.

[4] Latinjak, A. T., Figal-Gomez, L., Solomon-Turay, P. e Magrinyà-Vinyes, R. 2020. “The reflexive self-talk intervention: detailed procedures”, em Self-Talk in Sport, orgs. A. T. Latinjak e A. Hatzigeorgiadis (Londres: Routledge), pp. 91–108.

[5] Hatzigeorgiadis, A., Zourbanos, N., Galanis, E. e Theodorakis, Y. 2011. “Self-talk and sports performance: a meta-analysis.” Perspect. Psychol. Sci. 6:348–56. DOI: 10.1177/1745691611413136. 

Citação

Latinjak, A. e Hatzigeorgiadis, A. (2022). “Self-talk: chats that athletes have with themselves.” Front. Young Minds. 10:681923. DOI: 10.3389/frym.2022.681923.

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