Neurociências e Psicologia 29 de junho de 2022, 20:21 29/06/2022

Como o polvo consegue controlar, de forma tão eficiente, seu corpo flexível e cheio de tentáculos?

Autores

Jovens revisores

Ilustração de um homem olhando para um polvo dentro de um aquário. O polvo abre com seus tentáculos um pote com um caranguejo dentro

Resumo

Os oito tentáculos flexíveis do corpo do polvo lhe permitem executar um amplo leque de ações. Os polvos usam seus tentáculos para realizar vários tipos de movimento, como andar, rastejar e nadar. Aproveitam diferentes objetos, como cocos vazios e conchas de moluscos, para construir abrigos, exibindo a impressionante capacidade de alterar a cor de sua pele e a textura de seu corpo para se camuflar no ambiente. Ao mesmo tempo, a estrutura flexível do corpo do polvo cria um problema para seu sistema de controle motor porque ele precisa coordenar e dominar uma série infinita de estados corporais. Neste artigo, examinaremos os interessantes mecanismos que os polvos desenvolveram para controlar seus corpos tão peculiares.

Polvo: possibilidades de movimento quase infinitas

Os polvos são animais predadores que vivem em cavernas e fendas de rochas. Exibem comportamentos complexos, são muitíssimo inteligentes e possuem elevadas habilidades motoras(isto é, de movimento). Os polvos são dotados de complexos padrões de movimento, como andar, rastejar e escalar. Nadam usando seus tentáculos; e, para fugir de zonas perigosas, esguicham um forte jato de água, às vezes misturada com tinta, de seu sifão. A tinta consegue turvar a visão de seus predadores e assustá-los. Os polvos usam objetos como cocos vazios e conchas de moluscos para construir abrigos e exibem a maravilhosa capacidade de modificar a cor da pele e a textura do corpo para se camuflar no ambiente.

Eles são constituídos, sobretudo, de tecido macio e flexível. Os oito tentáculos são flexíveis que possuem cerca de trezentas ventosascada um, além de milhões de receptores sensoriais, principalmente na orla das ventosas, capazes de sentir texturas e sabores (Figura 1). O polvo sente o gosto de seu ambiente e dos objetos que encontra usando as ventosas de seus tentáculos. A combinação de tentáculos flexíveis e ventosas permite-lhe agarrar e examinar qualquer coisa. Ele usa os tentáculos para pegar alimento e levá-lo à boca, abrir conchas, apanhar animais escondidos entre corais e embaixo de pedras, e executar variados tipos de movimento.

Figura 1. Octopus vulgaris. (1) Localização do cérebro, (2) olhos, (3) tentáculos, (4) ventosas e(5) boca, que fica no ponto para onde os tentáculos convergem no corpo. Observe a grande flexibilidade e as variadas posições dos tentáculos.

Em laboratório, usando os tentáculos, polvos conseguiram remover as pesadas tampas de seus aquários e escapar; abrir a tampa de um vaso para pegar um caranguejo  e se insinuar em labirintos para retirar nacos de alimento. A variedade de ações complexas que os polvos executam com os tentáculos exige um sistema de controle motorbem desenvolvido. A função desse sistema é iniciar, direcionar e graduar movimentos voluntários. Para executar com eficiência movimentos apropriados às suas finalidades (como capturar presas, levar comida à boca, mover-se), o sistema de controle motor de um polvo precisa processar devidamente enormes quantidades de informação obtida por centenas de milhões de receptores sensoriais localizados em seu corpo – além de aprender com toda essa informação e lembrar experiências.

Como os movimentos corporais são controlados em humanos?

Controlar um corpo com oito “braços” flexíveis é um grande desafio para o sistema de controle motor. O esqueleto ósseo e rígido desenvolvido nos humanos e muitos outros animais limita o número de movimentos e posições possíveis do corpo, o que torna o controle motor bem mais fácil.

Tomemos para exemplo o braço humano. Temos o braço propriamente dito e o antebraço, ambos com ossos, de modo que sua forma não muda. Entre os dois, há uma articulação, o cotovelo, que permite ao antebraço mover-se em relação ao braço em apenas um ponto. É um movimento bastante limitado: caso o ombro fique estático, o antebraço só se moverá para cima e para baixo. Mesmo se considerarmos as articulações mais complexas dos dedos das mãos, o número de posições que conseguimos criar com as mãos é muito pequeno se comparado ao das diferentes posturas que o polvo assume com seus tentáculos totalmente flexíveis ­– e esses tentáculos são oito!

A flexibilidade do polvo se deve ao fato de ele não possuir esqueleto rígido, ou seja, todo segmento ao longo do tentáculo pode se curvar, girar e até alterar seu comprimento e espessura. Assim, o número de movimentos do tentáculo e das posições que o sistema de controle motor tem de monitorar em um corpo tão flexível é quase infinito. O número limitado de posturas do corpo humano permite ao cérebro controlar e monitorar diretamente a posição de cada parte dele a todo momento. É por isso que conseguimos executar várias ações sem ver nosso corpo, como entrelaçar os dedos atrás das costas: o cérebro simplesmente sabe onde estão as mãos sem precisar vê-las, o que é chamado de sensação proprioceptiva. Monitorar constantemente as posições de todas as partes do corpo não é nada prático para o polvo, já que tantas posições não podem ser representadas no cérebro.

De que modo o polvo controla seu cérebro?

O polvo possui um sistema nervoso relativamente extenso, com cerca de meio bilhão de células nervosas (similar ao do coelho). Esse sistema tem três centros principais: um cérebro central; dois lóbulos óticos, encarregados de captar a informação vinda pelos olhos; e o sistema nervoso periférico dos tentáculos, que contém dois terços de todas as células nervosas do corpo do animal. Um número relativamente pequeno de células nervosas conecta esses três centros. A estrutura do sistema nervoso do polvo revela que a maioria dos movimentos do tentáculo é controlada no nível dos tentáculos. Segundo parece, seu cérebro serve sobretudo para ativar os programas motoresjá presentes nos tentáculos [2].

Quando um tentáculo é amputado no polvo, esse tentáculo continua vivo por algumas horas, reagindo a estímulos dolorosos (como um beliscão) e realizando movimentos estereotipadoscomo a extensão do membro (Figura 2 ). Usando as ventosas, o tentáculo amputado pode transportar alimento ou um objeto qualquer na direção de sua base, como se fosse levá-lo à boca, ou afastar-se da base, como se estivesse se distanciando da boca. O tentáculo amputado pode mesmo decidir o grau de força que empregará para segurar diferentes objetos.

Por exemplo, agarrará peixes frescos com mais força do que agarraria um caranguejo cozido [5]. Isso nos diz que muitas ações rotineiras, como estender e recolher o tentáculo, são controladas ao nível do próprio tentáculo, reduzindo bastante o trabalho do cérebro. Esse mecanismo constitui uma vantagem óbvia em um animal como o polvo, cuja estrutura corporal flexível e de muitos tentáculos criaria um peso excessivo para o cérebro.

Figura 2. Movimentos típicos do tentáculo de um Octopus vulgaris. No quadro superior, da esquerda para a direita, você pode observar diversas etapas da extensão do tentáculo, quando o polvo procura alcançar um objeto (compare com a figura em [3]). No quadro inferior, estão as etapas de um típico movimento de retração, em que o polvo traz um objeto para junto de seu corpo (compare com a figura em [4]).

Programas motores já existem nos tentáculos do polvo

Uma ordem do cérebro provoca eventos de contração muscular que percorrem o tentáculo e fazem com que ele enrijeça e se alongue da base à extremidade (quando procura alimento, por exemplo, Figura 2). A pesquisa mostrou que o cérebro precisa controlar apenas a velocidade da extensão do tentáculo e o ângulo formado entre sua base e o corpo, o que determina a direção do movimento do tentáculo [3]. Esse programa motor, inserido no tentáculo, delega controle a este e diminui a carga computacional do cérebro.

O movimento de extensão bem-sucedido na captura de uma presa exige um movimento sequencial que consiste em levar a presa à boca. Vale notar que cada ponto ao longo do tentáculo pode ser o responsável pela captura da presa.

Uma pesquisa conduzida por Sumbre et al. [4] mostrou, conforme se vê na Figura 2, que o polvo, a fim de capturar a presa, geralmente recorre a um movimento estereotipado que divide os tentáculos em três segmentos a partir da base: proximal (perto da base), medial (no meio) e distal (longe da base). O segmento distal pega o objeto como uma mão humana, ao mesmo tempo que, nos segmentos proximal e medial, os músculos se contraem para criar duas áreas rígidas, de comprimento mais ou menos igual, com uma área flexível simulando uma articulação entre elas. Esse esquema lembra o braço humano, dividido por articulações em braço propriamente dito, antebraço e mão. Para levar o alimento à boca, o polvo curva a área flexível medial (semelhante a um cotovelo) em um movimento estereotipado que combina apenas três parâmetros controláveis.

É preciso levar em conta que, ao contrário do braço humano, o tentáculo do polvo pode remanejar sua divisão e a localização das articulações a cada movimento. É assim que ele “mata dois coelhos com uma só cajadada”: renuncia a alguns fatores computacionais, mas preserva a flexibilidade e a eficiência que lhe permitem agarrar um objeto com cada ponto ao longo do tentáculo e não apenas com a mão, como nos humanos.

Por que um polvo não “agarra” a si mesmo?

Conforme vimos, cada tentáculo do polvo é equipado com trezentas ventosas ao longo de seu comprimento. Elas tendem a se prender a quase tudo com que entram em contato. Mas então por que esses órgãos flexíveis não tocam outras partes do corpo do polvo e se prendem a elas? Isso se deve ao fato de os polvos serem aparentemente destituídos de sensação proprioceptiva, ou seja, não terem consciência das posições de seus tentáculos quando não podem vê-los.

Em laboratório, constatamos que as ventosas de um tentáculo amputado nunca se prendem a um objeto coberto com pele de polvo. Constatamos mesmo a existência de uma substância, na pele desses animais, que inibe a capacidade de prender das ventosas. Essa inibição, ao que tudo indica, é controlada por cada ventosa, já que as ventosas adjacentes se comportam de modo diverso quando apenas uma delas toca uma pele de polvo. O cérebro pode cancelar esse mecanismo em situações especiais, como durante uma luta contra outro polvo ou durante o acasalamento. O controle desse mecanismo no nível das ventosas é outra estratégia eficiente para reduzir o trabalho do cérebro e permitir ao polvo ter domínio sobre seus tentáculos flexíveis e “pegajosos”, ainda que o próprio polvo não consiga vê-los.

Resumo

A estrutura flexível do polvo, com seus muitos tentáculos, permite-lhe executar ações complexas e variadas, mas apresenta um enorme desafio a seu sistema de controle motor. A fim de enfrentar esse desafio, um sistema de controle motor sem igual se desenvolveu no polvo. Esse controle não ocorre unicamente no nível do cérebro, mas também no de cada tentáculo e mesmo de cada ventosa. Isso simplifica bastante o trabalho do cérebro e permite ao polvo ser extremamente flexível, o que o ajuda a resolver problemas complexos. Como pesquisadores de polvos, achamos que outros mecanismos singulares e fascinantes ainda estão por descobrir.

Glossário

Habilidades motoras: Ações que envolvem o movimento dos músculos do corpo. Um movimento hábil pode ser definido como aquele que combina quatro elementos diferentes: força, velocidade, precisão e intencionalidade.

Sifão: Estrutura semelhante a um tubo ou funil usada por alguns animais marinhos para respirar. O polvo utiliza o sifão para outros propósitos como esguichar água, limpar o ambiente e mover-se.

Ventosas: Estruturas de fixação localizadas nos tentáculos do polvo que ajudam esse animal a pegar objetos e executar outras ações. O polvo possui cerca de duas mil ventosas.

Sistema de controle motor: Parte do sistema nervoso que controla as funções motoras (isto é, os movimentos).

Sensação proprioceptiva: Capacidade do cérebro de sentir a posição das várias partes do corpo, ainda que o animal não as veja.

Lóbulos ópticos: Órgãos que integram um sistema especializado em codificar informações recebidas pela visão, registrá-las e decodificá-las a fim de fornecer respostas motoras [1].

Sistema nervoso periférico (SNP): Parte do sistema nervoso fora do sistema nervoso central (nos humanos, fora do cérebro e da medula espinal).

Programa motor: Série de ordens que resultam em uma dada ação, como graduar o enrijecimento dos músculos dos tentáculos no “movimento de busca” (ato de estender o tentáculo em direção a um objeto específico, usualmente para pegá-lo).

Movimento estereotipado: Movimento realizado sempre da mesma maneira.

Referências

[1] Young, J. Z. 1962. “The optic lobes of Octopus vulgaris.” Phil. Trans. R. Soc. Lond. B. 245:19–58. DOI: 10.1098/rstb.1962.0005.

[2] Levy, G. e Hochner, B. 2017. “Embodied organization of Octopus vulgaris morphology, vision, and locomotion.” Front. Physiol. 8:164. DOI: 10.3389/fphys.2017.00164.

[3] Gutfreund, Y., Flash, T., Yarom, Y., Fiorito, G., Segev, I. e Hochner, B. 1996. “Organization of octopus arm movements: a model system for studying the control of flexible arms.” J. Neurosci. 16:7297–307. DOI: 10.1523/JNEUROSCI.16-22-07297.1996.

[4] Sumbre, G., Fiorito, G., Flash, T. e Hochner, B. 2006. “Octopuses use a human-like strategy to control precise point-to-point arm movements.” Curr. Biol. 16:767–72. DOI: 10.1016/j.cub2006.02.069.

[5] Nesher, N., Levy, G., Grasso, F. W. e Hochner, B. 2014. “Self-recognition mechanism between skin and suckers prevents octopus arms from interfering with each other.” Curr. Biol. 24:1271–5. DOI: 10.1016/j.cub.2014.04.024.

Citação

Nesher, N. e Shomrat, T. (2021). “How does the octopus efficiently control its flexible, multi-armed body?” Front. Young Minds. 9:752728. DOI: 10.3389/frym.2021.752728.

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