Saúde Humana 20 de abril de 2022, 16:21 20/04/2022

CRISPR: Uma nova maneira para editar o DNA

Autores

Jovens revisores

Uma mulher sentada em uma mesa em frente a um microscópio imaginando como seria um animal meio peixe meio gato

Resumo

O sistema CRISPR/Cas9 mantém as bactérias protegidas de vírus. E vem sendo usado por cientistas para editar o DNA de organismos em laboratório. A capacidade de modificar DNA em laboratório nos permite saber mais sobre como o DNA funciona, tratar doenças e desenvolver novos produtos. A tecnologia CRISPR/Cas9 oferece inúmeros benefícios quando usada de maneira responsável. Contudo, devemos seguir as normas éticas para garantir que ninguém se prejudique no processo. Às vezes, novas tecnologias surgem com tamanha rapidez que nem os cientistas nem os governantes conseguem se preparar adequadamente para elas. Como cientistas, enquanto nos esforçamos para melhorar as vidas humanas, devemos sempre pensar nos riscos do que fazemos.

Assim como os humanos, as bactérias podem adoecer. Algumas possuem um sistema de defesa chamado CRISPR/Cas9, que as protege de infecções por vírus. Nos últimos anos, os cientistas têm adaptado esse sistema de defesa bacteriana para ser usado em laboratório a fim de alterar o DNA de vários organismos. Este artigo explica como o CRISPR/Cas9 é utilizado para editar genes e fornece exemplos da importância dessa tecnologia. Experimentos com o CRISPR/Cas9 devem ser realizados eticamente, ou seja, os cientistas precisam garantir que as pesquisas respeitem os direitos humanos e o bem-estar dos animais, tudo dentro da lei.

CRISPR/Cas9: O sistema de defesa das bactérias

Ninguém gosta de ficar doente. Tossimos, espirramos, temos febre e dor. Todos esses incômodos são sinais de que as defesas do corpo, chamadas sistema imunológico, estão tentando nos proteger dos invasores minúsculos que causam doenças, inclusive os vírus da gripe ou da Covid-19. Você sabia que os vírus podem infectar também muitos outros organismos… inclusive as bactérias?

Os vírus que infectam bactérias são chamados de bacteriófagos. As bactérias possuem também um sistema de defesa que as protege de infecções, embora esse sistema seja bem diferente do humano. Chama-se CRISPR/Cas9 [1]. Quando infecta uma bactéria, o bacteriófago injeta nela seu material genético. A bactéria reconhece o invasor e, com a ajuda do CRISPR/Cas9, corta o material genético em pedaços para deter a infecção. Em seguida, mantém um fragmento do material genético do bacteriófago para que, em caso de novo ataque, possa reagir mais rapidamente ao invasor.

O que é o CRISPR/Cas9?

CRISPR/Cas9 é a sigla inglesa para Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats (Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Espaçadas). A expressão parece não ter fim, mas continue lendo e entenderá esse nome complicadíssimo!

Como todos os organismos, as bactérias contêm um material genético chamado DNA. O DNA é constituído de componentes básicos, os nucleotídeos. E cada nucleotídeo é composto por uma base nitrogenada: adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T). A sequência desses componentes forma um código para as instruções que criam um organismo, do mesmo modo que sequências de letras formam palavras. Em alguns lugares, o código forma sequências palindrômicas, que podem ser lidas da esquerda para a direita ou ao contrário (A palavra “arara” é um exemplo de palíndromo). Um DNA-palíndromo pode ser escrito assim: TAGCGAT. Tal como “arara”, TAGCGAT tem a mesma leitura da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita.

Agora, imagine que existam várias cópias da sequência TAGCGAT no DNA: você pode chamá-las de “repetições” palindrômicas curtas porque, de fato, são repetidas. Se essas repetições palindrômicas aparecerem em grupos ao longo do código de DNA, nós as chamaremos de “agrupadas”. E, como são separadas por outras sequências de DNA, recebem o nome de “espaçadas”. Junte tudo isso e você terá as Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Espaçadas ou CRISPR! Quanto a Cas9, aparece na expressão porque é o nome de uma importante proteína usada no sistema CRISPR, que descreveremos abaixo.

De que modo o CRISPR/Cas9 ajuda os cientistas?

Você deve estar se perguntando por que o sistema de defesa das bactérias é tão importante para os cientistas. Eles procuram um meio de usar o sistema CRISPR/Cas9 para editar ou modificar a sequência de DNA. A descoberta de como usar o CRISPR/Cas9 em laboratório foi extremamente importante para a comunidade científica – tão importante que, em 2020, duas pesquisadoras que contribuíram para essa descoberta (Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna) receberam o maior prêmio científico do mundo: o Nobel de Química.

Como mencionamos, os nucleotídeos que constituem o DNA formam um código onde estão as instruções responsáveis pelo organismo inteiro. Os segmentos do DNA que codificam uma característica específica, por exemplo a cor do pelo de um cachorro, são chamados genes. Digamos que sabemos qual gene controla a cor do pelo de um cachorro. Se a ordem dos nucleotídeos nesse gene for mudada, a cor do pelo do cachorro poderá mudar também. Por quê? Porque mudamos as instruções que determinam a cor desse pelo (Figura 1).

Figura 1: (A) O DNA é composto de duas fitas, ligadas para formar a chamada dupla hélice. (B) As fitas de DNA são feitas de blocos de construção, os nucleotídeos. E estes podem conter adenina (A), timina (T), citosina (C) ou guanina (G). (C) Os nucleotídeos são dispostos numa sequência específica, que contém as instruções para a vida! (D) Graças a uma molécula intermediária, o RNA, o DNA fabrica proteínas que se combinam para formar o organismo. Se o DNA mudar, ele pode alterar também a proteína que codifica, o que poderá causar transformações no organismo. (Colaboração de BioRender.com).

A fim de entender como usar o sistema CRISPR/Cas9 para editar genes, você precisa entender primeiro as partes desse sistema e como funcionam. Primeiro, os cientistas precisam determinar a ordem dos nucleotídeos, ou sequência, do gene que pretendem editar. Felizmente, existem websites com essa informação.

Depois que a sequência dos genes é conhecida, a primeira peça do sistema CRISPR/Cas9 que devemos usar é uma proteína especial chamada Cas9. A Cas9 funciona como uma tesoura que corta o DNA. Ela pode cortar o DNA em qualquer ponto, mas queremos que corte apenas o gene em que estamos interessados. Levar a Cas9 para o lugar certo exige um componente chamado RNA guia, que age como as coordenadas de GPS, direcionando a Cas9 para a sequência que desejamos cortar. O RNA guia percorre a sequência do gene conduzindo a Cas9 para a localização exata no DNA (Figura 2A).

Perto do RNA guia temos o local PAM, uma sequência de três nucleotídeos que atua como as linhas pontilhadas mostrando à Cas9 o lugar onde o DNA deve ser cortado. Vemos um PAM pertinho da área do DNA que queremos cortar (Figura 2B). O componente final recebe o nome de modelo de reparo, uma peça de DNA com a nova sequência que queremos inserir no gene (Figura 2C).

Usando um modelo de reparo, podemos copiar, colar, acrescentar ou apagar partes da sequência do DNA, do mesmo modo que editamos frases num documento do Word! Digamos, por exemplo, que nossa intenção seja acrescentar nucleotídeos ATGCTA ao gene. O modelo de reparo conterá ATGCTA mais um DNA extra de cada lado, semelhante ao gene original, para dizer ao reparo aonde ele deve ir. Então, depois que o DNA for reparado, os novos nucleotídeos serão colados no DNA exatamente onde queremos que ele fique (Figura 2D). Temos, assim, nosso gene editado.

Figura 2: Edição de gene com uso do CRISPR/Cas9. A. Primeiro, a proteína Cas9 é levada pelo RNA guia ao local certo no gene que queremos mudar. B. O local PAM mostra à Cas9 onde ela deve cortar o DNA. C. O modelo de reparo, contendo a mudança que queremos fazer no gene, encontra a área cortada e ajuda a fixar o DNA. D. O DNA reparado inclui as mudanças desejadas! (Colaboração de BioRender.com).

Que coisas podem ser estudadas usando o CRISPR?

Agora que os cientistas entendem melhor essa ferramenta de edição de gene, o CRISPR/Cas9, que coisas eles podem fazer com ela? A Figura 3 mostra alguns exemplos. Pesquisas com o CRISPR/Cas9 são regularmente feitas em organismos como bactérias, leveduras, vermes e camundongos porque é fácil manuseá-los em laboratório [2]. Essas espécies podem contar aos cientistas muita coisa sobre o DNA humano, como o modo de funcionamento dos genes, pois alguns genes humanos são iguais, ou quase, aos de outras espécies.

Figura 3: Os vários usos do CRISPR/Cas9. A. Os médicos usam o CRISPR/Cas9 para tratar doenças causadas por erros no DNA. B. Os pesquisadores podem usar o CRISPR/Cas9 para resgatar da extinção animais como o mamute. C. Os cientistas podem criar novos produtos, como tomates picantes, usando o CRISPR/Cas9 para mudar seu DNA. D. O CRISPR/Cas9 é usado na pesquisa para o estudo das funções dos genes. (Colaboração de BioRender.com)

Algumas doenças humanas são causadas por erros no DNA que podem ser transmitidos de geração em geração. Cientistas e médicos tentam usar o CRISPR/Cas9 para tratá-las identificando e corrigindo os erros. Esse tipo de tratamento de doenças é chamado de terapia genética e, sendo muito novo, ainda não foi plenamente testado em humanos. Se a terapia genética via CRISPR/Cas9 se revelar segura para humanos, será um meio promissor de ajudar pessoas que sofrem de doenças causadas por erros no DNA.

Não seria ótimo ver um mamute ou um dinossauro andando por aí? Os cientistas acham que podem usar o CRISPR/Cas9 para trazer de volta animais extintos! Recentemente, usaram com sucesso o CRISPR/Cas9 para modificar células de elefante e inserir nelas o DNA do mamute. Essas mudanças podem dar aos elefantes certos traços do mamute, como o pelo espesso, que os ajudará a sobreviver em climas mais frios.

As empresas também poderão usar o CRISPR/Cas9 para criar novos produtos. Imagine como seria gostoso um tomate picante! Os pesquisadores estão investigando um modo de modificar o DNA do tomate para que ele produza capsaicina, a substância que torna a pimenta ardida. Os molhos nunca mais serão os mesmos! Outros cientistas usam o CRISPR/Cas9 para desenvolver novas variedades de plantas como o trigo. As novas variedades serão capazes de crescer até em situações de clima extremo como secas ou ondas de calor provocadas pela mudança climática.

Muito poder, muita responsabilidade

As aplicações do CRISPR/Cas9 são excitantes, mas a comunidade científica exige regras internacionais para garantir que essa tecnologia seja usada de maneira segura e ética. A ética são as orientações morais ditadas aos cientistas para que seu trabalho proteja a segurança e a saúde pública. A ética determina que toda pesquisa respeite os direitos humanos, o bem-estar dos animais e a lei: os cientistas não devem prejudicar as pessoas, os animais ou o meio ambiente. Como o CRISPR/Cas9 é fácil de usar e não custa muito, torna-se difícil controlar quem o usa e para quê [3]. Os cientistas decidiram que editar DNA é ético caso isso seja usado para prevenir doenças ou curá-las. Mas outras questões permanecem de pé, como saber se é seguro trazer de volta um mamute. Você acha que os cientistas devem resgatar animais extintos ou modificar alimentos? Essas perguntas são muito importantes!

Você se arriscaria a modificar o DNA de seus filhos antes do nascimento, mesmo sabendo que um pequeno equívoco poderia acarretar terríveis consequências? A maior parte da comunidade científica quer evitar esses riscos. Mesmo assim, houve algumas pesquisas controversas com CRISPR/Cas9 que envolviam embriões humanos. Um cientista chamado He Jiankui modificou o DNA de dois gêmeos antes de seu nascimento. Esse trabalho provocou escândalo no mundo inteiro porque ele quebrou as normas éticas ao editar embriões humanos [4]. Os cientistas devem levar em conta que existem possíveis fatos imprevisíveis no uso irresponsável dessa tecnologia. Por isso, a Organização Mundial da Saúde e outras entidades estão hoje monitorando de perto a pesquisa de edição do genoma humano, para que seja feita de maneira responsável.

Glossário

Bacteriófago: Um tipo de vírus que só infecta bactérias.

Nucleotídeo: Componentes que formam o DNA e que podem conter uma de quatro bases nitrogenadas: adenina (A), citosina (C), guanina (G) ou  timina (T).

Sequência palindrômica: Determinada ordem de nucleotídeos que pode ser lida da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. Por exemplo, TAGCGAT é uma sequência palindrômica.

Cas9: Proteína que funciona como uma tesoura para cortar DNA. Essa proteína é uma parte imprescindível do CRISPR/Cas9, motivo pelo qual é incluída no nome!

RNA guia: Pequena fita de RNA que leva a Cas9 ao local onde deverá cortar o DNA.

Local PAM: Sequência de três nucleotídeos na ordem NGG (onde N é um A, G, T ou C). Essa sequência surge como uma linha pontilhada no lugar onde a Cas9 corta o DNA.

Modelo de reparo: Sequência de DNA que o cientista escolhe para reparar o DNA no local onde foi cortado, acrescentando, apagando ou modificando o DNA.

Terapia genética: Método de tratar doenças causadas por mutações no DNA. Corrigindo-se o DNA, elimina-se a doença.

Ética: Conjunto de normas que os cientistas devem seguir para que seu trabalho não prejudique animais ou humanos.

Referências

[1] Hsu, P. D., Lander, E. S. e Zhang, F. 2014. “Development and applications of CRISPR-Cas9 for genome engineering.” Cell. 157:1262 – 78. DOI: 10.1016/j.cell.2014.05.010.

[2] Zhang, S., Guo, F., Yan, W., Dai, Z., Dong, W., Zhou, J. et al. 2019. “Recent advances of CRISPR/Cas9-based genetic engineering and transcriptional regulation in industrial biology.” Front. Bioeng. Biotechnol. 7:459. DOI: 10.3389/fbioe.2019.00459.

[3] Brokowski, C. e Adli, M. 2019. “CRISPR ethics: moral considerations for applications of a powerful tool.” JMB 431:88 –101. DOI: 10.1016/j.jmb.2018.05.044.

[4] Cyranoski, D. 2019. “The CRISPR-baby scandal: what’s next for human gene-editing.” Nature. 566:440 – 42. DOI: 10.1038/d41586-019-00673-1.

Citação

Marnik, E., Bautista, C., Drangowska-Way, A., Simopoulos, C. e Merritt, T. (2021). “CRISPR: A new way for scientists to edit DNA.” Front. Young Minds. 9:600133. DOI: 10.3389/frym.2021.600133.

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