Saúde Humana 12 de outubro de 2022, 09:00 12/10/2022

De que modo a luz afeta o relógio interno do corpo?

Autores

Jovens revisores

Ilustração de uma mulher sentada em um peitoril da janela ao lado de um cérebro. A mulher lê um livro durante a madrugada. O cérebro aponta frustrado para o relógio

Resumo

Você já se perguntou por que fica ativo de dia e sonolento à noite? E por que acontece o contrário com animais como a coruja e o rato? Um bom motivo é a chamada fotorrecepção circadiana, que é o modo pela qual sincronizamos o relógio interno de nosso corpo, que trabalha 24 horas, com o ciclo de luz externo. Esse processo se inicia no olho. Aqui, discutiremos as características da fotorrecepção circadiana e mencionaremos os cientistas que nos ajudam a entender esse processo. Exploraremos as partes principais envolvidas na fotorrecepção circadiana: os fotopigmentos do olho, que mudam quando absorvem luz, cada qual localizado em suas próprias células. Por último, estudaremos as células ganglionares, que são células especiais do olho encarregadas de enviar informação ao cérebro.

Por que você fica ativo de dia e sonolento à noite? Esse ciclo ocorre devido a um processo chamado fotorrecepção circadiana, que é a maneira pela qual sincronizamos o relógio interno de nosso corpo, que funciona 24 horas, com os períodos de luz e escuridão lá fora. Fotorrecepção significa que um sistema biológico está percebendo luz. Circadiano é um ritmo próximo de 24 h. Portanto, fotorrecepção circadiana é o modo como o relógio biológicodo cérebro, que é uma parte especial deste chamada NSQ (núcleo supraquiásmico), sincroniza seu ritmo de 24 horas com o nascer do sol. O relógio biológico do cérebro é, por seu turno, responsável pela manutenção de vários ritmos circadianos: alterações mentais, físicas e comportamentais associadas ao relógio de 24 horas.

A fotorrecepção circadiana integra o sistema visual e está, portanto, relacionada a processos que ocorrem nos olhos. Normalmente, quando você pensa em olhos, pensa em visão. Os fotorreceptores são um tipo especial de células nervosas, existentes nos olhos, que respondem à luz. De dia, usamos fotorreceptores chamados cones. De noite, quando há menos luz, usamos outro tipo de fotorreceptores, chamados bastonetes. Bastonetes e cones contêm fotopigmentos, pigmentos especiais que mudam quando absorvem luz. Cada célula fotorreceptora contém apenas um tipo, ou cor, de fotopigmento.

Características da fotorrecepção circadiana

Os cientistas descobriram que a fotorrecepção circadiana pressupõe os olhos. Como fizeram isso? Usaram camundongos, que são parecidos com os humanos em termos de genética e comportamento. Camundongos e humanos possuem os mesmos fotopigmentos nos mesmos tipos de células. As células até parecem as mesmas e têm o mesmo tamanho. Os cientistas removeram as células que conectam os olhos dos camundongos a seu cérebro. Depois, testaram os ratos para saber se eles despertavam “ao nascer do sol”. Não, não despertavam! Todavia, ainda possuíam ciclos de sono regulares, embora adormecessem e despertassem independentemente do nascer do sol.

Os cientistas concluíram, então, que pelo menos parte da fotorrecepção circadiana devia ocorrer no olho [1]. Mais tarde, demonstraram que algumas pessoas completamente cegas ainda sincronizavam seus ciclos de sono com os ciclos de luz [2]! Isso era uma evidência inicial de que os humanos, como os ratos, tinham outros fotorreceptores além dos usados para ver. Os cientistas também descobriram um caminho que conecta o olho ao relógio biológico existente no cérebro, que é uma parte diferente daquela que nos permite ver. O relógio biológico existente no cérebro é chamado de NSQ, núcleo supraquiasmático (Figura 1). Embora o NSQ seja pequeno, é muito importante e está ligado a várias outras regiões do cérebro.   

Figura 1. O núcleo supraquiasmático (NSQ) é o relógio biológico do cérebro tanto em humanos quanto em camundongos. A luz é detectada pelos olhos e a informação vai para o cérebro por intermédio dos nervos óticos. O relógio central do cérebro, o núcleo supraquiasmático, acha-se onde os nervos que partem dos olhos se juntam acima do céu da boca. Tudo acontece da mesma forma em humanos e camundongos.

Para entender um pouco mais sobre a fotorrecepção circadiana, os pesquisadores colocaram camundongos em três situações diferentes. Eles colocaram alguns camundongos em condições que correspondiam à claridade diurna e à escuridão noturna, e registraram sua atividade. Os camundongos corriam em suas rodinhas só à noite. Em seguida, ficaram no escuro. Ainda que não houvesse luz do sol para lhes dizer que horas eram, eles seguiram seu relógio biológico [4]. Isso significa que acordavam e dormiam segundo um ritmo diário, o qual, entretanto, não correspondia mais ao relógio da parede.

Por último, os cientistas lançaram um pequeno facho de luz sobre os ratos em plena escuridão e depois os deixaram novamente no escuro. Constataram que, no dia seguinte, os camundongos acordaram algumas horas mais cedo e, pelo resto do experimento, seguiram esse novo horário. Concluíram que os ciclos de sono/vigília dos ratos haviam sido reajustados. O facho de luz alterara a hora de seu despertar. Além disso, se projetassem o mesmo facho em horas diferentes do dia, os camundongos despertavam algumas horas mais tarde no dia seguinte. De novo, seu relógio interno fora reajustado [5].

Em seguida, os pesquisadores quiseram descobrir se a intensidade da luz lançada sobre os camundongos e sua duração influenciavam os resultados. Constataram que o sistema de fotorrecepção circadiana, em ratos, exige mais luz para ser ativado do que os bastonetes – estes exigem muito menos. A intensidade de luz necessária para a fotorrecepção circadiana em ratos não é muito maior que a da claridade da Lua. Isso faz sentido porque os ratos são animais noturnos (isto é, ficam acordados à noite). Quando despertam à luz da Lua, não querem que essa luz reajuste seu relógio interno porque estão despertando na hora certa para eles (Figura 2). Ao contrário, usam a pouca luz que veem quando o Sol nasce e se põe para acertar o relógio.

Figura 2. Um camundongo à luz da Lua. A luz da Lua não é suficientemente forte para reajustar o relógio biológico dos camundongos. Os humanos, porém, ficam despertos durante o dia. Dessa forma, qualquer luz que vemos à noite pode reajustar nossa fotorrecepção circadiana. Quando você vai para a cama, vê televisão ou usa algum dispositivo eletrônico? Essa luz pode ser suficiente para interferir na fotorrecepção circadiana. Que tal ler um livro?

Os pesquisadores descobriram também que o sistema de fotorrecepção circadiana parece contar o número de fachos de luz que detecta por longos períodos. Os bastonetes e cones, contudo, não funcionam assim. O sistema de fotorrecepção circadiana pode mediar a quantidade de luz que chega aos olhos. Assim, uma luz forte por um período curto pode ter o mesmo efeito que uma luz fraca por um período longo [6].

Melanopsina: um novo fotopigmento

Os cientistas queriam descobrir onde, exatamente, os fotorreceptores responsáveis pela fotorrecepção circadiana estavam localizados. Vários cientistas pensam que os bastonetes e os cones são os responsáveis, mas ainda precisam comprovar essa ideia.

Clyde Keeler foi um dos primeiros pesquisadores a encontrar ratos que não tinham bastonetes nem cones, ou seja, eram cegos. Mas Keeler descobriu também que eles mesmo assim respondiam à quantidade de luz alterando a dimensão de suas pupilas [7]. Mais tarde, Melanie Freedman e Russel Foster realizaram um experimento similar. Constataram que camundongos cegos podiam ainda responder à intensidade da luz e alterar sua hora de dormir de acordo com ela. Concluíram então que devia haver outro fotopigmento na retina – mas seus colegas cientistas queriam mais provas [8].

Um aluno de Foster, Ignacio Provencio, ajudou a descobrir essas provas. O novo fotopigmento, chamado melanopsina, era diferente dos fotopigmentos presentes em bastonetes e cones. A descoberta desse fotopigmento em peles de rãs confirmou que Foster estava certo.

Provencio descobriu que a melanopsina se achava em células ganglionares localizadas na camada mais interna do olho (Figura 3) [9]. Essas células especiais enviam informação ao cérebro. Normalmente, as células ganglionares, que recolhem informação sobre a luz dos bastonetes e dos cones, não respondem diretamente à luz. No entanto, o cientista David Berson constatou que quando elas contêm melanopsina, respondem diretamente à luz. Os cientistas deram às células ganglionares um nome especial: células ganglionares retinais intrinsecamente fotossensíveis (CGRIFs). Sim, o nome soa complicado; mas, quando o decompomos, fica fácil de entender. “Intrinsecamente” significa “por natureza”; “fotossensíveis” quer dizer “sensíveis à luz”; “retinal” alude ao lugar em que as células são encontradas (retina); e a palavra “ganglionares” se refere ao tipo de células [10].

Figura 3. Ao longo da parte interna do olho (parte traseira e lados) existe um fino tecido chamado retina. A luz passa pelas células ganglionares da retina e vai para os bastonetes e cones, na parte traseira do olho. Os bastonetes e cones enviam a informação luminosa de volta para as células ganglionares, que a mandam para o cérebro. Algumas células ganglionares chamadas de CGRIFs respondem diretamente à luz e não precisam de bastonetes nem de cones para “conversar” com o cérebro. A melanopsina contida nas CGRIFs é que realmente detecta a luz. A retina pode usar tanto a melanopsina quanto os cones e bastonetes para concretizar a fotorrecepção circadiana (Fc). Se as CGRIFs estiverem mortas, não haverá fotorrecepção circadiana.

De que modo as CGRIFs, os cones e os bastonetes trabalham juntos?

Os cientistas descobriram que as CGRIFs usam o mesmo caminho do olho ao cérebro usado pelo sistema de fotorrecepção circadiana [10, 11]. Descobriram também que, para ser ativadas, as CGRIFs precisam mais ou menos da mesma quantidade de luz  que os humanos e ratos utilizam para ajustar seu relógio interno [12]. Além disso, as CGRIFs parecem contar o número de fachos de luz que recebem em longos períodos. Sim, as CGRIFs contam fachos de luz: por exemplo, luzes rápidas/fortes e luzes longas/fracas dão o mesmo número de fachos. Isso causou espanto na comunidade de cientistas da visão porque contrariava a ideia persistente de que a fotorrecepção ocorria apenas em bastonetes e cones!

Embora saibamos que as CGRIFs respondem à luz, elas estão também conectadas a outros fotorreceptores, como os bastonetes e os cones. A parte inferior da Figura 3 resume o modo como essas estruturas trabalham juntas.

Mesmo quando os pesquisadores removem a melanopsina, a fotorrecepção circadiana continua acontecendo: isto é, a melanopsina não é necessária para a fotorrecepção circadiana porque os bastonetes e os cones podem assumir sua função. Quando os bastonetes e os cones são removidos, a fotorrecepção circadiana nem por isso deixa de acontecer: portanto, eles não são necessários para essa função porque a melanopsina pode assumi-la.

Mas quando a melanopsina, os bastonetes e os cones são todos removidos, não há mais fotorrecepção circadiana [13]. Então, esses três fotorreceptores são partes necessárias do sistema de fotorrecepção circadiana. Quando as próprias CGRIFs são removidas, e não apenas tiradas de seus pigmentos, também não há mais fotorrecepção circadiana. Conclui-se assim que as CGRIFs, por conterem melanopsina, são o único caminho pelo qual a informação transita do olho para o relógio biológico do cérebro. As CGRIFs podem captar luz usando qualquer dos três fotopigmentos: bastonetes, cones ou melanopsina [14].

Conclusão

A fotorrecepção circadiana é o nome do processo graças ao qual sintonizamos nosso relógio interno de 24 horas com o ciclo luminoso externo. E isso começa nos olhos. A evidência da fotorrecepção circadiana levou à descoberta de um novo fotopigmento, a melanopsina, um fato revolucionário na ciência da visão. Antes disso, os cientistas pensavam que os bastonetes e os cones eram os únicos fotopigmentos encontrados em humanos. A fotorrecepção circadiana depende de células que contenham melanopsina, chamadas CGRIFs, que formam o único caminho por onde a informação passa do olho para o relógio biológico existente no cérebro. Como isso se dá independentemente da visão, nosso cérebro na verdade percebe luz que não “vemos”.  Nossos olhos ajustam o despertador em nosso NSQ e este nos acorda na hora certa.

Glossário

Fotorrecepção circadiana: Modo como sincronizamos o relógio interno de nosso corpo, que funciona por 24 horas, com o ciclo luminoso externo.

Relógio biológico: Relógio interno do organismo que mantém seu ritmo circadiano.

Fotorreceptor: Tipo especial de célula que responde à luz. Os fotorreceptores incluem os bastonetes e os cones.

Núcleo supraquiasmático (NSQ): Pequena região do cérebro, acima do céu da boca, que recebe informação luminosa do olho e controla os ritmos circadianos.

Melanopsina: Fotopigmento mais sensível à luz azul, muito importante para a fotorrecepção circadiana.

Células ganglionares: Células que constituem a parte mais interna da retina. Ramificações delas formam um nervo que penetra no cérebro a fim de conduzir informação sobre a luz.

Células ganglionares retinais intrinsecamente fotossensíveis (CGRIFs): Células ganglionares que são sensíveis à luz porque contêm o fotopigmento melanopsina.

Retina: Tecido muito fino e sensível à luz que recobre o interior do olho.

Referências

[1] Richter, C. P. 1978. “‘Dark-active’ rat transformed into ‘light-active’ rat by destruction of 24-hr clock: function of 24-hr clock and synchronizers.” Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 75:6276–80. DOI: 10.1073/pnas.75.12.6276.

[2] Czeisler, C. A., Shanahan, T. L., Klerman, E. B., Martens, H., Brotman, D. J., Emens, J. S. et al. 1995. “Suppression of melatonin secretion in some blind patients by exposure to bright light.” N. Engl. J. Med. 332:6–11. DOI: 10.1056/NEJM199501053320102.

[3] Moore, R. Y. e Lenn, N. J. 1972. “A retinohypothalamic projection in the rat.” J. Comp. Neurol. 146:1–14. DOI: 10.1002/cne.901460102.

[4] Pittendrigh, C. S. e Daan, S. 1976. “A functional analysis of circadian pacemakers in nocturnal rodents.” J. Com. Physiol. 106:223–52. DOI: 10.1007/BF01417856.

[5] De Coursey, P. J. 1960. “Daily light sensitivity rhythm in a rodent.” Science 131:33–5. DOI: 10.1126/science.131.3392.33.

[6] Takahashi, J. S., De Coursey, P. J., Bauman, L. e Menaker, M. 1984. “Spectral sensitivity of a novel photoreceptive system mediating entrainment of mammalian circadian rhythms.” Nature. 308:186–8. DOI: 10.1038/308186a0.

[7] Keeler, C. E. 1927. “Iris movements in blind mice.” Am. J. Physiol. 81:107–12. DOI: 10.1152/ajplegacy.1927.81.1.107.

[8] Freedman, M. S., Lucas, R. J., Soni, B., von Schant, M., Muñoz, M., David-Gray, Z. et al. 1999. “Regulation of mammalian circadian behavior by non-rod, non-cone, ocular photoreceptors.” Science. 284:502–4. DOI: 10.1126/science.284.5413.502.

[9] Provencio, I., Rollag, M. D. e Castrucci, A. M. 2002. “Photoreceptive net in the mammalian retina.” Nature. 415:493–3. DOI: 10.1038/415493a.

[10] Berson, D. M., Dunn, F. A. e Takao, M. 2002. “Phototransduction by retinal ganglion cells that set the circadian clock.” Science. 295:1070–3. DOI: 10.1126/science.1067262.

[11] Hattar, S., Liao, H. W., Takao, M., Berson, D. M. e Yau, K. W. 2002. “Melanopsin-containing retinal ganglion cells: architecture, projections, and intrinsic photosensitivity.” Science. 295:1065–70. DOI: 10.1126/science.1069609.

[12] Mure, L. S., Vinberg, F., Hanneken, A. e Panda, S. 2019. “Functional diversity of human intrinsically photosensitive retinal ganglion cells.” Science. 366:1251–5. DOI: 10.1126/science.aaz0898.

[13] Panda, S., Provencio, I., Tu, D. C., Pires, S. S., Rollag, M. D., Castrucci, A. M. et al. “Melanopsin is required for non-image-forming photic responses in blind mice.” Science. 301:525–7. DOI: 10.1126/science.1086179.

[14] Güler, A. D., Ecker, J. L., Lall, G. S., Haq, S., Altimus, C. M., Liao, H. W. et al. 2008. “Melanopsin cells are the principal conduits for rod–cone input to non-image-forming vision.” Nature. 453:102–5. DOI:1038/nature06829.

Citação

Kuchhangi, A. e Buhr, E. (2022). “How does light affect the body’s internal clock?” Front. Young Minds. 10:748342. DOI: 10.3389/frym.2022.748342.

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