O círculo da vida: a matemática das relações entre predador e presa
Autores
John S. Butler, Rebecca M. Brady
Jovens revisores
Resumo
Alguns animais caçam outros bichos para se alimentar. São chamados de predadores. Os que são caçados e comidos são chamados presas. O que, em sua opinião, aconteceria se um predador fosse introduzido em um ecossistema onde as presas viviam até então sem medo de ser caçadas? O predador comeria todas as presas até que elas se extinguissem? Na verdade, as relações entre predador e presa são bem mais interessantes do que isso. Mostraremos a seguir como são de fato essas relações no tempo e explicaremos de que modo os cientistas conseguem prever os níveis populacionais futuros usando matemática básica como soma, subtração e multiplicação.
Por que estudar populações animais?
Os cientistas precisam coletar informações para descobrir uma maneira de proteger o ambiente e os animais que nele vivem. Às vezes, recorrem à matemática para testar teorias que levantaram a respeito dos animais ou mesmo para predizer o futuro! Isso é chamado de modelagem matemática. Modelar as relações entre predadores e presas ajuda os cientistas a compreender por que suas populações mudam com o tempo e a detectar se determinado animal corre o risco de extinção. Para elaborar um modelo matemático adequado, precisamos coletar dados do ambiente. Neste artigo, mostraremos como um pouco de matemática básica (por exemplo, soma, subtração e multiplicação) pode ser usada para modelar as relações entre predador e presa tais como acontecem existem no ambiente selvagem.
Primeiro, precisamos de dados!
Bons modelos começam com bons dados. A fim de modelar uma relação predador-presa, utilizaremos dados populacionais (registros do número de animais existentes) coletados por uma empresa que caçava tanto predadores quanto presas por causa de seu pelo, nos séculos 19 e 20. A antiga empresa Companhia da Baía Hudson fazia registros do número de peles de linces e lebres que caçava. A Figura 1 mostra os dados da empresa para o número de peles de linces e de lebres, que nos revela os níveis da população de cada animal e nos fornece um quadro razoável da relação predador-presa. Os dados mostram que em alguns anos, como 1927, havia mais linces (predadores) e menos lebres (presas), ao passo que em outros, como 1932, havia mais lebres e menos linces.
O que nos dizem os dados da Companhia da Baía Hudson?
O aumento e a diminuição das populações registradas de lebres e linces ao longo do tempo sugerem que existe uma relação entre os dois animais – o que faz sentido, pois sabemos que linces comem lebres. Na Figura 1, você percebe que ambas as populações aumentam e diminuem mais ou menos ao mesmo tempo? Quando há mais linces, eles comem mais lebres; a população de lebres diminui, restando menos alimento para os linces, cuja população, por sua vez, diminui. Quando a população de linces diminui, a das lebres volta a aumentar e o ciclo de aumento e diminuição continua. Se as populações de predadores e presas se equilibram, a caça dá sequência ao processo de aumento e diminuição ao longo do tempo, e o círculo da vida prossegue. A pergunta que um matemático faz é: “Posso explicar esse fato usando soma, subtração e multiplicação a fim de calcular as populações futuras?”
Como explicar a relação com modelos matemáticos?
Os matemáticos usam equações diferenciais e dados para descrever o que veem no mundo. A relação predador-presa foi descrita pela primeira vez, com o uso de equações diferenciais, por dois cientistas chamados Lotka [1] e Volterra [2]. Eles empregaram a matemática para explicar o aumento e a diminuição observados na relação geral entre predador e presa.
As equações podem às vezes parecer muito complicadas, mas conseguem descrever como e por que as populações se alteram. Um matemático famoso, chamado Leonhard Euler (1707-1783), mostrou que as equações diferenciais podiam ser escritas como valores de mais e de menos, com um pouquinho de multiplicação. As equações diferenciais podem ser usadas para modelar as populações de linces (predadores) e lebres (presas) aproveitando-se os dados da Companhia da Baía Hudson. Ajustamos os dados originais recorrendo a métodos matemáticos [3] a fim de estimar os valores para a taxa de crescimento (tcrescimento), a taxa de morte (tmorte), a taxa comida (tcomida) e a taxa de alimento (talimento), que usaremos para predizer as populações de lebres e linces.
Modelagem da população de lebres
Ao desenvolver uma equação, o matemático pensa no mundo. Agora, pensemos no que acontece com a população de lebres ao longo do tempo. Se não houver linces, então a população de lebres no futuro, LF, será igual à população de lebres atual, LA, mais nascimentos e menos mortes. A isso chamamos de taxa de crescimento, rcrescimento. O número de nascimentos e mortes dependerá do número de lebres vivas no momento; então, multiplicamos rcrescimento por LA (Figura 2A).
Usemos os dados da Companhia da Baía Hudson para inserir números na equação. Quando os dados começaram a ser colhidos, em 1895, a população de lebres era de 85; portanto, seja LA = 85 lebres. A taxa de crescimento para a população de lebres é tcrescimento = 0,9 em um ano. Como tcrescimento é positivo, esperamos que a população futura aumente. Assim, em 1896, a população futura de lebres, LF, será:
LF = LA + (tcrescimento x LA), LF = 85 + (0,9 x 85) = 161,5.
Previmos que a população futura de lebres será de 165,5 lebres. Se a população continuar crescendo assim, o mundo inteiro ficará coberto de lebres, fenômeno a que se dá o nome de crescimento exponencial (Figura 2A).
Modelagem da população de linces
Consideremos o que acontece à população de linces ao longo do tempo. Se não houver lebres, os linces não terão alimento e sua população diminuirá. Para modelar esse fenômeno, usamos a subtração. O número futuro de linces (LiF) é igual ao número atual (LiA) menos a taxa de mortes, tmortes, vezes o número atual (Figura 2B).
A população de linces, em 1895, é 51; e, aplicando os dados, estabelecemos a taxa de mortes em tmortes = 0,25. A equação então será:
LiF = LA – (tmortes x LiA),
LiF = 51 – (0,25 x 51) = 38,25.
Portanto, segundo nossos cálculos, a população futura de linces será, em 1896, de 38,25 linces. Isso se chama declínio exponencial e, se continuar acontecendo, não haverá mais linces (Figura 2B).
Modelagem da interação lebres-linces
Por si mesma, a população de lebres aumenta enquanto a de linces diminui. Como saber de que modo essas populações interagem? Linces comem lebres e, assim, fazem com que a população destas diminua; assim, usamos a subtração para modelar esse fenômeno. Precisamos de um termo para a taxa de lebres comidas, tcomidas, que depende da população atual de linces e da população disponível de lebres, para que aqueles comam e estas sejam comidas. Portanto, multiplicamos tcomidas por LiA e LA.
Seguindo a mesma lógica, as lebres são uma fonte de alimento para os linces; então, empregamos a soma na equação dos linces e multiplicamos a população atual de lebres pela população atual de linces vezes uma taxa de alimento, talimento (Figura 2C).
Os valores de LA = 85 lebres, tcrescimento = 0,9, LiA = 51 linces, e a tmortes = 0,25 permanece a mesma. Com base nos dados, obtemos uma taxa de lebres comidas de tcomidas = 0,024 e uma taxa de alimento de talimento = 0,005. Inserindo esses dados na equação de predição do número futuro de lebres, obtemos:
LF = LA + (tcrescimento x LA) – (tcomidas x LiA x LA),
LF = 85 + (0,9 x 85) – (0,024 x 85 x 51) = 59,24,
e a equação da predição do número futuro de linces dará:
LiF = LiA – (tmortes x LiA) + (talimento x LiA x LA),
LiF = 51 – (0,25 x 51) + (0,005 x 51 x 85) = 59,925.
Nosso modelo (as duas equações acima) prediz um declínio na população de lebres e um aumento na população de linces em 1895, conforme mostrado na Figura 3 pelas setas verde e vermelha.
A fim de predizer como as populações mudarão no ano seguinte, 1897, aplicaremos nossos valores LF e LiF a LA e LiA nas novas equações. Toda vez que fizermos isso, obteremos novos valores e cada valor será um ponto em nossos gráficos da Figura 3.
Visualização da relação predador-presa
Usando as equações acima e alguns códigos de computador [4], simulamos as populações de linces e lebres, fazendo com que nossos dados mostrem como a relação predador-presa evolui com o tempo (Figura 3).
Outra maneira de mostrar como duas espécies estão associadas é simular de que maneira a população de lebres (eixo x) e a população de linces (eixe Y) mudam em sua relação mútua (Figura 3C). O x no meio mostra a média das populações de lebres (39) e de linces (45), sendo conhecido como ponto de equilíbrio. As populações de linces e lebres orbitam em torno dessa média enquanto as populações aumentam e diminuem, formando o círculo da vida. Isso lembra a órbita da Terra em volta do Sol. As populações giram e giram, o que representa seus pontos altos e baixos ao longo do tempo. Num sistema equilibrado, como o que aqui modelamos, a órbita permanece estável; mas, caso comece a variar para dentro ou para fora, isso pode ser um sinal inicial de mudança.
Uma dessas mudanças ocorreu em 1995, quando lobos foram reintroduzidos no parque Yellowstone. Isso levou a alguns resultados surpreendentes para o ecossistema local3. Com base nessas curiosas observações e na matemática similar à que mostramos aqui, Goodman et al. Desenvolveram um jogo de computador capaz de construir um ecossistema equilibrado4.
Os modelos não são exatos
Quando tentam descrever uma coisa complicada, os matemáticos simplificam o procedimento. As equações que mostramos são para simplificá-lo, também. Simplificações são feitas para mostrar que predições e simulações não seguem perfeitamente os dados originais. Eis algumas informações que deixamos de fora de nosso modelo:
. Há mais de um predador para a lebre.
. Os linces não caçam apenas lebres; também comem peixes e esquilos.
. Em nosso modelo, as lebres não ficam sem alimento, o que não é verdade no inverno.
. Que dizer dos caçadores de peles que caçam tanto linces quanto lebres?
Para fazer com que as equações funcionem nessas outras situações, precisaremos incluir outras, além de mais somas e subtrações. Se tivermos todos os dados, poderemos perfeitamente modelar o futuro. Mas mesmo com essas simplificações, os matemáticos ainda conseguem fazer um bom trabalho ao modelar as populações de lebres e linces.
De que outra maneira esse modelo pode ser usado?
Se você trocar “lince” por “tubarão” e “lebre” por “peixe” nesse modelo, a matemática continuará funcionando, com os dados certos [2]. Você poderá até usar as mesmas equações caso troque “lince” por “zumbi” e “lebre” por “humano”! A relação predador-presa pode ser expandida para além das populações animais e usada para modelar a interação entre empresas, as reações químicas e a disseminação dos vírus.
Sumário
A fim de desenvolver modelos do mundo real, os matemáticos precisam, primeiro, ter bons dados. Ou seja, é vital para os cientistas, conservacionistas – e mesmo caçadores de peles! – coletar informação do ambiente. Utilizando dados, podemos visualizar padrões nas relações e depois empregar a matemática para recriar esses padrões e predizer dados futuros que possam representar e predizer o futuro dessas relações. As predições nos ajudam a preservar ecossistemas equilibrados. Felizmente, lendo este artigo, você constata que isso só exige a matemática básica da soma, subtração e multiplicação – e um pouquinho de pensamento inteligente – para modelar e predizer as populações de predadores, presas e muito mais.
Glossário
Equações diferenciais: ↑ Equações que descrevem como as populações mudam com o tempo e muitos outros processos, incluindo como um helicóptero voa, como os planetas orbitam uma estrela ou como o sangue flui por nossas veias.
Estimativa: Valor suficientemente próximo da resposta exata, usualmente obtido com base em algum conhecimento do sistema ou em um cálculo.
Taxa de crescimento: Taxa de crescimento é o aumento da população de lebres quando elas não têm predadores. Pode ser avaliada a partir de dados baseados no número de nascimento menos o número de mortes.
Taxa de mortes: Taxa de mortes é a diminuição da população de linces com o tempo, quando eles não têm o que comer. É o número de mortes menos o de nascimentos.
Taxa de comida: Taxa de comida é o número de lebres caçadas e comidas pelos linces.
Taxa de alimento: Taxa de alimento é o número de lebres que o lince precisa comer para sobreviver.
Crescimento exponencial: Crescimento contínuo e rápido.
Ponto de equilíbrio: Ponto de equilíbrio entre duas populações. Quando um sistema está em equilíbrio, dizemos que é estável.
Agradecimentos
Este trabalho contou com o apoio do Irish Research Council (GOIPG/2020/943).
Referências
[1] Lotka, A. J. 1920. “Analytical note on certain rhythmic relations in organic systems.” Proc. Natl. Acad. Sci. USA. 6:410–5.
[2] Volterra, V. 1926. “Fluctuations in the abundance of a species considered mathematically.” Nature. 118:558–60.
[3] de Silva, B. M., Champion, K., Quade, M., Loiseau, J. C., Kutz, J. N. e Brunton, S. L. 2020. “PySINDy: a python package for the sparse identification of nonlinear dynamics from data.” arXiv Preprint arXiv: 2004.08424.
[4] Butler, J. S. e Brady, R. M. 2020. Predator Prey Code for Young-Minds. GitHub. Disponível online em https://github.com/john-s-butler-dit/Predator-Prey-for-Young-Minds.
Citação
Brady, R. e Butler, J. (2021). “The circle of life: the mathematics of predator-prey relationships.” Front. Young Minds. 9:651131. DOI: 10.3389/frym.2021.651131.
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