O que os núcleos de gelo podem nos dizer sobre o passado da Terra
Autores
Alison S. Criscitiello, Anne L. Myers
Jovens revisores
Resumo
As regiões glaciais da Terra são extremamente frias e a neve pode se acumular ali durante dezenas de milhares de anos. Cada nova nevasca aumenta a pressão sobre a neve que já estava depositada abaixo, e assim formam-se várias camadas de gelo. Essas camadas contêm informações sobre o passado da Terra, relativas ao momento em que a neve caiu. Ao coletarmos fragmentos dessas camadas de gelo em longos cilindros chamados testemunhos ou núcleos de gelo, podemos examiná-los para ver até que ponto o clima da Terra mudou ao longo de muitos anos e os efeitos que os processos terrestres e a atividade humana exerceram sobre o nosso planeta. Os núcleos de gelo são singulares porque muitas das informações que obtemos a partir deles não podem ser encontradas em nenhum outro lugar. Ao complementarmos as informações dos núcleos de gelo com aquelas vindas de outras fontes (por exemplo, dados de satélite e meteorológicos, conhecimento e experiência humana), conseguimos aprender ainda mais sobre o passado da Terra.
Como o passado da Terra ficou registrado no gelo?
A Terra possui duas regiões polares. A região polar norte é chamada de Ártico (onde os ursos polares vivem) e a região polar sul é chamada de Antártica (onde os pinguins vivem).
Essas regiões recebem menos luz solar do que outros lugares da Terra. Devido à pouca luz solar, tais lugares são extremamente frios. Por isso, quando neva, não há calor suficiente para derreter toda a neve e ela vai se acumulando com o passar do tempo. À medida que cai, a nova neve empurra a antiga para mais longe da superfície, e aumentando a pressão sobre ela. Essa pressão faz com que a neve se transforme em gelo. Por fim, cada nova nevasca se torna uma camada de gelo. Camadas de gelo semelhantes também se formam em regiões glaciais alpinas, como as Montanhas Rochosas e o Himalaia. Elas contêm informações sobre o clima, os processos da Terra e a atividade humana no momento da queda da neve. Podemos examinar essas informações coletando núcleos de gelo [1].
O que é um núcleo de gelo e como o coletamos?
Um núcleo de gelo é uma longa coluna composta por muitas camadas de gelo que se acumulam ao longo do tempo a cada queda de neve.
Para coletar um núcleo de gelo, uma broca é usada para abrir no gelo um buraco vertical longo e profundo. A broca, acionada manualmente ou por motor, é feita de um tubo oco, de modo que, quando a puxamos do buraco, ela sai trazendo uma longa coluna de gelo em seu interior. Algumas brocas podem abrir buracos com mais de 1 km de profundidade, mas nosso laboratório recolhe, principalmente, núcleos de gelo com cerca de 25 m de profundidade e 9 cm de diâmetro. Às vezes, coletamos núcleos de gelo de profundidade intermediária, com cerca de 200 m de profundidade. O núcleo do gelo é perfurado e coletado a 1 m de cada vez, portanto, para um núcleo de 25 m, teremos 25 segmentos de gelo de um metro. Núcleos rasos podem conter um acúmulo de camadas de gelo que variam de alguns anos a muitas décadas, pois estão próximos à superfície e representam eventos de queda de neve mais recentes.
A Figura 1 mostra os passos básicos para coletar um núcleo de gelo. Como você pode ver, coletar núcleos de gelo implica trabalhar em temperaturas extremamente frias! Os cientistas dessa área devem usar equipamentos especiais, como óculos de proteção e roupas quentes, para realizar seu trabalho com segurança.
Depois que o núcleo do gelo é coletado, são feitas imediatamente medições como comprimento, peso e temperatura. Os segmentos são, então, embalados cuidadosamente em longos sacos plásticos, colocados em caixas térmicas e cobertos de neve para evitar que se derretam durante o transporte. As caixas são enviadas para nosso laboratório na Universidade de Alberta. Lá, ficam armazenadas em um freezer a temperaturas de -36°C até estarmos prontos para analisá-las. Os núcleos de gelo podem nos contar histórias de como o clima da Terra mudou ao longo de muitos anos e os efeitos que os processos da Terra e a atividade humana exerceram sobre o nosso planeta. As evidências desses eventos no núcleo de gelo podem ser visíveis a olho nu, mas muitas vezes exigem uma análise mais detalhada em nível molecular, utilizando-se equipamento de laboratório especial.
Evidências de um clima em mudança
Quando olhamos para um núcleo de gelo, muitas vezes podemos ver camadas densas que representam mudanças sazonais e quedas de neve. Perto do topo do núcleo as camadas anuais são mais espessas, e elas às vezes são empregadas para contar o número de anos registrados naquele núcleo [1]. À medida que nos aprofundamos num núcleo, as camadas se tornam mais comprimidas e cada ano é representado por uma parte cada vez menor do núcleo até que não é mais possível enxergarmos as camadas anuais a olho nu – mas podemos usar a química do núcleo do gelo para datar essas camadas compactadas!
O gelo da geleira pode conter faixas turvas que parecem brancas quando o gelo é cortado muito fino e polido. Essas camadas, geralmente, contêm impurezas como poeira, fuligem, cinzas, poluentes provenientes da atividade humana e partículas oriundas de incêndios florestais. O tamanho dos cristais de gelo é menor no gelo que contém mais impurezas, pois estas impedem a formação de cristais maiores (Figura 2).
As camadas se tornam borradas quando ocorre o derretimento. Isso acontece quando a neve superficial derrete e escorre para a camada de neve embaixo (Figura 2). Ao congelar de novo, a neve forma uma camada de gelo com poucas bolhas. Os cientistas observaram um aumento nas camadas derretidas do Ártico canadense nas últimas décadas, o que sugere que o clima da Terra está aquecendo [2].
Embora as camadas derretidas possam alterar a química de um núcleo de gelo, muitas vezes elas apenas redistribuem a água e alteram a química dentro de um ano, de modo que os registros do núcleo de gelo continuam úteis. No entanto, o aquecimento do clima é certamente uma preocupação para os cientistas da área, e alguns arquivos glaciares correm o risco de perder-se devido ao derretimento. O Ice Memory Project é um programa centrado na obtenção de núcleos de gelo de glaciares ameaçados pelas alterações climáticas – locais em que registros climáticos de valor inestimável podem ser perdidos para sempre se os núcleos de gelo não forem recuperados agora.
Além das informações que obtêm a partir do próprio gelo, os cientistas podem procurar pelos gases que ficaram presos nas bolhas de ar dentro do gelo. Esses gases nos dão um vislumbre da composição passada da atmosfera, incluindo concentrações de gases do efeito estufa, ao longo de muitas centenas de milhares de anos [3].
Evidências de processos terrestres
As erupções vulcânicas ejetam grandes quantidades de partículas de cinzas e gases ácidos para o ar. Essas partículas e gases podem viajar longas distâncias pelo ar e se depositar nas regiões polares. Ao examinar as camadas de gelo em busca de cinzas e ácidos, conseguimos identificar quando ocorreram erupções vulcânicas no passado (Figura 3). E ao examinar a composição química das partículas de cinza, os cientistas podem, às vezes, até identificar de que vulcão elas vieram [1].
Evidências de atividade humana
Produtos químicos produzidos pelo homem, que não existem de forma natural, já foram observados em núcleos de gelo. Alguns desses produtos podem chegar às regiões polares pelo ar, vindos de lugares onde as pessoas vivem e os utilizam. Os bifenilos policlorados (BPCs) são um exemplo. Esses produtos químicos foram usados em equipamentos elétricos como isolantes entre 1929 e os anos 1970. Quando os cientistas descobriram que os BPCs estavam sendo liberados e contaminavam o meio ambiente, sua fabricação foi suspensa. Num núcleo de gelo de Svalbard, na Noruega, os cientistas descobriram que os níveis de BPCs diminuíram entre 1983 e 1998. Isso mostrou que a eliminação progressiva da fabricação de produtos químicos nocivos produzidos pelo homem, como os BPCs, diminui os impactos da atividade humana sobre regiões polares remotas [4].
Evidências de testes com armas nucleares realizados entre 1945 e 1980 também foram observadas em núcleos de gelo. Esses testes liberaram um elemento chamado plutônio na atmosfera, onde ele permaneceu durante anos antes de se depositar nas regiões polares. Camadas de núcleo de gelo com altos níveis de plutônio correspondem aos períodos de tempo em que sabemos terem ocorrido testes com armas nucleares [5]. Essas camadas com grandes quantidades de plutônio são utilizadas para atribuir datas a camadas de núcleos de gelo, permitindo aos cientistas compararem núcleos de gelo de diferentes regiões.
Por que as histórias que os núcleos de gelo nos contam são importantes?
Muitas das informações que obtemos dos núcleos de gelo não podem ser encontradas em nenhum outro lugar. Camadas de gelo que datam de dezenas de milhares de anos, ou mesmo 100 anos, são normalmente a única evidência que temos das mudanças climáticas e dos processos da Terra ou da atividade humana. Por exemplo, 50 mil anos atrás a humanidade não dispunha de satélites que registrassem os detalhes e as imagens das erupções vulcânicas. Mas uma erupção vulcânica ocorrida naquela época pode ter depositado cinzas e ácido na neve superficial, e esta neve acabou sendo soterrada por quedas de neve ao longo de milhares de anos, preservando uma camada de gelo que agora pode nos contar muita coisa sobre aquele evento vulcânico.
Num exemplo mais recente, vários produtos químicos produzidos pelo homem não eram tidos como prejudiciais ao meio ambiente até serem utilizados em larga escala. As evidências da presença de BPCs nas camadas de gelo dos últimos 70 anos nos dizem quando esses produtos químicos começaram a contaminar nossas regiões polares remotas.
Embora os exemplos acima destaquem informações específicas que se pode obter examinando apenas os núcleos de gelo, as histórias dos núcleos de gelo são mais robustas quando em combinação com dados meteorológicos e de satélite, o conhecimento e a experiência humanos, e outras informações.
Esses dados complementares incluem, por exemplo, observações por satélite de fenômenos como a temperatura da superfície do mar e os ventos, e dados automáticos de estações meteorológicas, como umidade relativa e temperatura. Juntos, todos esses dados, somados às informações dos núcleos de gelo, podem nos dizer como as mudanças no ambiente são registradas e influenciam as geleiras ou mantos de gelo próximos. Assim como num quebra-cabeça, não se consegue conhecer o quadro completo até que todas as peças se encaixem. Por isso, os cientistas desse campo colaboram frequentemente com especialistas de outras áreas, de químicos e oceanógrafos até habitantes de regiões remotas e frias.
Núcleos de gelo nos contam sobre o passado da Terra: mas e o futuro?
Examinar os padrões que observamos nos núcleos de gelo pode nos esclarecer sobre os efeitos que as mudanças climáticas, os processos da Terra e a atividade humana provocaram em nosso planeta. Os cientistas usam esses padrões passados para elaborar modelos científicos que os ajudem a prever o que talvez aconteça no futuro. Por exemplo, se constatarmos que o número de camadas derretidas num núcleo de gelo aumentou nos últimos 25 anos, poderemos prever que a tendência ao aquecimento continuará no futuro.
Os modelos científicos podem ser muito complexos porque precisam incluir muitas informações para uma melhor previsão dos resultados futuros. Os modelos de mantos de gelo, por exemplo, exigem dados sobre temperatura, precipitação e outros fatores que nos ajudem a prever o futuro desses mantos e de certas geleiras. Os Modelos de Circulação Geral Atmosfera-Oceano usam fontes de energia relevantes (por exemplo, radiação, calor latente) e muitas outras fontes de dados para ajudar os cientistas a preverem o tempo e o clima futuros. Utilizando modelos científicos, as histórias que os núcleos de gelo nos contam sobre o passado podem ajudar-nos a compreender nosso futuro. Compreender o que acontecerá com a Terra e com seu clima no futuro é o primeiro passo para fazer mudanças hoje – mudanças que nos ajudarão a proteger nosso planeta e as criaturas vivas que o habitam!
Glossário
Regiões polares: Regiões ao redor dos polos Norte e Sul que ficam dentro dos círculos polares e são alguns dos lugares mais frios da Terra.
Núcleo de gelo: Uma longa coluna de gelo contendo muitas camadas compactas de neve que se acumulam ao longo do tempo.
Cristais de gelo: Água congelada que exibe padrões geométricos.
Camada derretida: Neve superficial que derreteu, escorreu para a camada de neve embaixo e congelou novamente, resultando em uma camada de gelo com poucas bolhas de ar.
Bifenilos policlorados (BPCs): Produtos químicos tóxicos produzidos pelo homem, outrora utilizados em vários processos industriais e agora um contaminante ambiental que preocupa.
Plutônio: Elemento químico radioativo.
Modelo científico: Representação conceitual, matemática ou física de um sistema real ou de um processo difícil de observar diretamente.
Referências
[1] Alley, R. B. 2000. The Two Mile Time Machine. Princeton, NJ: Princeton University Press.
[2] Fisher, D., Zheng, J., Burgess, D., Zdanowicz, C., Kinnard, C., Sharp, M. et al. 2012. “Recent melt rates of Canadian Arctic ice caps are the highest in four millennia.” Glob. Planetary Change 84–85:3–7. DOI: 10.1016/j.gloplacha.2011.06.005.
[3] Brook, Ed J. 2007. “Ice core methods overview”, in Encyclopedia of Quaternary Science, org. A. E. Scott (Oxford: Elsevier), pp.1145–56.
[4] Garmash, O., Hermanson, M. H., Isaksson, E., Schwikowski, M., Divine, D., Teixeira, C. et al. 2013. “Deposition history of polychlorinated biphenyls to the Lomonosovfonna glacier, Svalbard: a 209 congener analysis.” Environ. Sci. Technol. 47:12064–72. DOI: 10.1021/es402430t.
[5] Arienzo, M. M., McConnell, J. R., Chellman, N., Criscitiello, A. S., Curran, M., Fritzsche, D. et al. 2016. “A method for continuous 239Pu determinations in Arctic and Antarctic ice cores.” Environ. Sci. Technol. 50:7066–73. DOI: 10.1021/acs.est.6b01108.
Citação
Myers, A. e Criscitiello, A. (2022). “What ice cores can tell us about Earth’s past.” Front. Young Minds.10:712036. DOI: 10.3389/frym.2022.712036.
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