Ideias fundamentais 29 de março de 2023, 16:54 29/03/2023

O significado científico do falar enquanto se dorme

Autores

Jovens revisores

Ilustração de um menino dormindo e babando enquanto murmura palavras aleatórias.

Resumo

Seus pais, irmãos ou amigos já lhe disseram que você estava falando enquanto dormia? Isso não é motivo para se envergonhar! Um estudo recente constatou que mais de 50% de todas as pessoas já tiveram a experiência de falar em voz alta enquanto dormiam [1]. Esse cálculo pode até ter sido subestimado porque muitas vezes as pessoas não percebem que estão falando enquanto dormem, a menos que alguém as acorde ou lhes conte no dia seguinte. A maioria dos neurocientistas, linguistas e psicólogos que estudam a fala estão interessados em nossa produção de linguagem e nas habilidades de compreensão de conversas durante o dia. Neste estudo, exploraremos o que se sabe sobre a produção da fala articulada durante a noite. Achamos que o estudo da fala durante o sono pode ser tão interessante quanto o estudo da fala durante a vigília.

O que é o falar enquanto se dorme? 

O ato de falar durante o sono (ou sonilóquio) pode ser considerado como parte de uma família maior de tipos de “expressões de sono”, que inclui murmurar, rir, gemer e assobiar durante o sono. O antigo filósofo grego Heráclito de Éfeso já observara alguém dormindo e falando há cerca de 2.500 anos, então essa não é uma descoberta recente. Acontece em todas as idades (desde que a pessoa seja capaz de falar!) e pode ocorrer a qualquer momento da noite. A fala durante o sono é mais comum em crianças do que em adultos. Mas talvez isso se deva, simplesmente, ao fato de os pais ficarem mais atentos a elas.

Às vezes, esse hábito é situado entre comportamentos involuntários que podem acontecer durante o sono (chamados de “parassonias”), como o sonambulismo, o bruxismo (ranger de dentes) e até mesmo tipos de distúrbios de comportamento em que os pacientes podem se machucar ou ferir seu parceiro ao fazer movimentos perigosos involuntariamente enquanto dormem. Entretanto, falar durante o sono quase nunca é um problema e em geral não exige nenhum tratamento. Uma exceção é quando ocorre após uma experiência traumática, como no caso de soldados que lutaram em uma guerra. 

Quando falamos durante o sono? 

O sono humano passa por diferentes etapas  que podem ser distinguidas pelo exame de registros da atividade elétrica por sensores colocados no couro cabeludo da pessoa, um método chamado eletroencefalografia (EEG; ver Figura 1). Embora os sonhos possam ocorrer durante todas as etapas do sono, sonhamos mais vividamente em uma etapa conhecida como “sono REM” devido à ocorrência de Rapid Eye Movements  (Movimentos Oculares Rápidos). Durante o sono REM, todos os músculos do corpo (com exceção dos músculos oculares, obviamente) são paralisados por estruturas neurais existentes no tronco cerebral, que nos impedem de levar adiante nossos sonhos. Assim, movimentos complexos como o sonambulismo ocorrem apenas durante as etapas do sono não REM. Nesses casos, uma pequena parte do cérebro parece ficar acordada enquanto o resto do cérebro dorme [2].

Isso parece ser verdade também para o ato de falar durante o sono: a produção da fala requer o planejamento e a execução de sequências rápidas de movimentos musculares, portanto, provavelmente ocorrerá em etapas de sono sem paralisia, não REM [3]. Parece então que a fala proferida em voz alta enquanto dormimos (“fala durante o sono”) não é necessariamente a contrapartida perfeita das coisas que podemos dizer silenciosamente em nossos sonhos ou pesadelos (“fala em sonho”). No entanto, falar durante o sono REM também foi relatado – o que pode acontecer quando o tronco cerebral, por um breve período, não consegue paralisar os músculos do corpo [4]. De qualquer forma, a existência de falas durante o sono e de sonhos mostra que nosso cérebro não está completamente “desligado” durante o sono. 

Figura 1. Atividade elétrica do cérebro tal qual registrada por cinco eletrodos colocados no couro cabeludo de uma pessoa, medida em microvolts (μV). Pequenas deflexões nas ondas mostradas aqui revelam que a pessoa está ficando um pouco sonolenta. Da mesma forma, o exame dessas ondas enquanto a pessoa está dormindo nos permite distinguir diferentes etapas do sono. 

O que as pessoas dizem durante o sono? 

A visão popular, encontrada em canções e romances populares, é que as pessoas às vezes traem seus segredos mais íntimos durante o sono porque não têm controle sobre o que dizem.A pesquisa mostrou que a revelação de segredos pessoais durante o sono é muito rara e incomum [5], embora não seja incomum aludir durante o sono a coisas e pessoas encontradas durante o dia. Falar dormindo pode refletir os sentimentos de alguém, mas não necessariamente sentimentos “secretos”. Vamos dar uma olhada no que as pessoas realmente dizem dormindo e comparar isso com o que falamos em estado de vigília. Aqui estão alguns exemplos do que falamos dormindo, retirados de um grande banco de dados [5]: 

Exemplo A: “Mm, hm – sim, sim”. 

Exemplo B: “Pavão?! Há uma árvore cheia de pavões e andorinhas e outras colorações, aabsolutamente, aaaabsolutamente deslumbrantes – pegue minha câmera, Larry, e não se esqueça de virar o filme ou terei ataques quando voltar – vamos ! Deus, você deveria ver isso.” [Palavras proferidas em tom de entusiasmo, atenção e vivacidade.] 

Exemplo C: “Eu quero pegar uma rede – uma nota – uma nota”. 

À primeira vista, esses enunciados não parecem tão diferentes das coisas que dizemos durante o dia. E, de fato, em termos linguísticos, as semelhanças entre a fala durante o sono e a fala em vigília são impressionantes. Os enunciados podem ser muito simples e curtos, como no exemplo A, que não é muito diferente de uma resposta rápida e casual em uma conversa cotidiana. O exemplo B, por outro lado, mostra como a conversa durante o sono pode ser complexa. Inclui diferentes tipos de ato de fala, incluindo uma pergunta, uma descrição de cena visual e um imperativo (“pegue minha câmera”) direcionado a um destinatário específico (“Larry”), com vários padrões de entonação.

Tais habilidades da produção de fala durante a noite, conforme aparecem nos exemplos acima, sugerem que as redes cerebrais envolvidas na produção de fala podem ser ativadas enquanto uma pessoa está dormindo. Com base em pesquisas com participantes acordados, sabemos que essas redes estão pela maior parte nos lobos frontal e temporal do cérebro, principalmente no hemisfério esquerdo. 

Da mesma forma que a conversa coloquial cotidiana, a que ocorre durante o sono pode conter erros de fala. O exemplo C mostra que um possível erro de fala é imediatamente corrigido pelo falante adormecido. Problemas na busca de palavras e na codificação correta dos sons que compõem uma palavra parecem um pouco mais comuns na fala durante o sono do que na fala cotidiana. Às vezes, eles até se assemelham às dificuldades de encontrar palavras em pessoas que sofrem de tipos específicos de afasia, um distúrbio de linguagem causado por disfunção de (partes) do cérebro.

Outra característica de alguns exemplos de conversa durante o sono é a aparente falta de coerência temática dos enunciados subsequentes. Uma possibilidade é que tais enunciados estejam relacionados ao conteúdo do sonho, no qual cenas com temas diferentes e aparentemente não relacionados podem se suceder com grande rapidez. Em contraste com essas habilidades diminuídas durante o sono, existem alguns relatos anedóticos de pessoas sendo mais criativas ou eloquentes na fala durante o sono do que na fala acordada: por exemplo, ao falar uma segunda língua. Outra diferença importante entre a fala durante o sono e a fala cotidiana é que as pessoas muitas vezes não se lembram, no dia seguinte, de que falaram abertamente durante o sono e muito menos do que disseram. 

Em contraste com o problema de achar as palavras certas e a falta de coerência incidental, a estrutura gramatical das frases durante o sono quase sempre é perfeitamente correta. Ao que parece, nossos cérebros são capazes de produzir frases gramaticalmente corretas enquanto dormimos. Isso sugere que a construção da estrutura gramatical de uma frase na produção da fala (incluindo a fala em vigília) é um processo amplamente automático, o qual pode ocorrer sem que o falante precise prestar muita atenção a ela. Em contrapartida, isso permite que o falante se concentre mais no conteúdo da mensagem [6]. Temos aí é um exemplo de como o estudo da fala durante o sono pode ter implicações para nossa compreensão da produção da fala na vigília. O Quadro1 resume alguns fatos divertidos sobre falar durante o sono. 

Algumas curiosidades sobre falar dormindo 

  1. Falar dormindo acontece em todas as idades e pode ocorrer durante todos os períodos da noite. 
  2. Falar dormindo é mais comum em crianças do que em adultos. 
  3. O cérebro não fica totalmente “desligado” durante a noite; caso contrário, falar dormindo não seria possível. 
  4. Há muitas canções sobre falar dormindo e sonhar, por exemplo Talking In Your Sleep (The Romantics). 
  5. Falar dormindo é às vezes mais criativo do que o discurso produzido durante o dia! 

Conclusão e visão geral 

Em resumo, existem muitas semelhanças marcantes entre a conversa em vigília e a conversa durante o sono, mas também algumas diferenças. Surpreendentemente, falar dormindo não chamou muito a atenção dos cientistas nos últimos trinta anos. Diversas questões permanecem sem resposta e ainda há muita coisa a ser descoberta. Particularmente, ainda não temos uma boa explicação neurobiológica das diferenças entre a conversa durante o sono e a conversa insone em termos dos níveis de ativação das redes cerebrais envolvidas na produção da fala. Dormir conversando pode, portanto, ser um atraente tópico de estudo para as mentes jovens. 

Glossário 

Eletroencefalografia (EEG): ↑ Método que permite a pesquisadores e médicos observarem e analisarem a atividade do cérebro colocando pequenos sensores (“eletrodos”) no couro cabeludo de uma pessoa. 

Lobo frontal: Parte do cérebro localizada na frente da cabeça, atrás da testa. 

Hemisfério: O cérebro pode ser dividido em uma parte esquerda e uma parte direita, separadas por uma grande fissura. As duas partes, que são conectadas, chamam-se hemisfério direito e hemisfério esquerdo. 

Linguista: Pessoa que estuda a linguagem ou línguas diferentes. Alguns linguistas, por exemplo, descrevem línguas que são faladas apenas por um pequeno grupo de pessoas. Outros tentam entender por que um idioma muda ao longo do tempo. Infelizmente, não são muitos os linguistas que estudam a fala durante o sono. 

Neurocientista: Pessoa que estuda o cérebro (e algumas outras partes do sistema nervoso). Alguns neurocientistas, por exemplo, tentam entender o que acontece em nossos cérebros quando estamos dormindo. 

Lobo temporal: Parte do cérebro globalmente localizada acima e atrás das orelhas, em ambos os hemisférios.

Referências

[1] Bjorvatn, B., Grønli, J. e Pallesen, S. 2010. “Prevalence of different parasomnias in the general population.” Sleep Med. 11:1031–1034.DOI: 10.1016/j.sleep. 2010.07.011.

[2] Bassetti, C., Vella, S., Donati, F., Wielepp, P. e Weder, B. 2000. “SPECT during sleepwalking.” Lancet 356:484–485. DOI: 10.1016/S0140-6736 (00)02561-7. 

[3] Arkin, A. M., Toth, M. F., Baker, J. e Hastey, J. M. 1970. “The frequency of sleep talking in the laboratory among chronic sleep talkers and good dream recallers.” J. Nerv. Ment. Dis. 151:369–374. DOI: 10.1097/00005053-197012000-00002.

[4] Uguccioni, G., Pallanca, O., Golmard, J. L., Dodet, P., Herlin, B., Leu-Semenescu, S. et al. 2013. “Sleep related declarative memory consolidation and verbal replay during sleep talking in patients with REM sleep behavior disorder.” PLoS One 8: e83352. DOI: 10.1371/journal.pone.0083352.

[5] Arkin, A. N. 1981. “Sleep talking. Psychology and psychophysiology.” Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates.

[6] Kempen, G. 1981. “De architectuur van het spreken. Interdisciplinair Tijdschrift voor Taal Tekstwetenschap.” 1:110–123. 

Citação

Peeters, D. e Dresler, M. (2014). “Scientific significance of sleep talking.” Front. Young Minds. 2:9. DOI: 10.3389/frym.2014.00009. 

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