Ideias fundamentais Saúde Humana 5 de julho de 2023, 11:35 05/07/2023

Por que o fígado é tão maravilhoso? 

Autores

Jovens revisores

Ilustração de um fígado posando, ele esta usando uma capa de super herói e um bandeide. 

Resumo

O fígado é um órgão que desempenha muitas funções importantes no corpo. No entanto, se você o observar ao microscópio, ele vai parecer muito sossegado, porque a maioria de suas células permanece em estado de não divisão (chamado de quiescente). O fígado é muito importante porque possui uma grande capacidade de tolerar vários tipos de lesões. Após um ferimento ou outro dano, todas as suas células mudam e se dividem até que o tamanho normal do órgão seja restaurado. Esse processo interessante é, em geral, conhecido como “regeneração hepática”. Se a lesão for tão grave que o fígado não consiga se regenerar, a pessoa pode precisar de um novo órgão, ou seja, de um transplante. Você aprenderá que, devido a sua capacidade de “regeneração”, o fígado pode ser doado enquanto o doador ainda está vivo.

Estrutura e funções do fígado

O fígado é o maior dos órgãos que se localizam no abdome, pesa cerca de 1,5 kg em humanos e se organiza em seções chamadas lóbulos [1]. O fígado é como uma grande fábrica, onde algumas moléculas são produzidas e outras são destruídas a fim de obter a energia de que o corpo precisa para funcionar. O fígado armazena energia e usa-a durante longos períodos de jejum ou quando dormimos. Elimina substâncias tóxicas do corpo, como álcool, remédios ou drogas, por meio da produção de uma substância chamada bile (esse processo tem o nome de desintoxicação).

A bile é uma espécie de suco que atua como detergente para quebrar certas substâncias e digerir gorduras. Como é impossível misturar água e óleo, o fígado usa a bile para capturar gotas de gordura em uma “bolha”. A estrutura das bolhas permite que elas percorram o ambiente aquoso do corpo. Depois de ser produzida pelo fígado, a bile é transportada por pequenos vasos (canalículos biliares) localizados nos hepatócitos até um órgão próximo chamado vesícula biliar, de onde passa para o intestino, onde os nutrientes são recuperados, e em seguida volta para o fígado. A rota que a bile percorre do fígado ao intestino é conhecida como árvore biliar. Além disso, o fígado atua como parte do sistema imunológico, pois ajuda o corpo a lutar contra organismos infecciosos.

Para desempenhar todas essas tarefas complexas, o fígado é constituído de vários tipos de células (Figura 1). À primeira vista, o fígado apresenta uma cor vermelha intensa. Isso ocorre porque ele contém muitos vasos sanguíneos ou sinusoides, que transportam sangue dos intestinos, baço e pâncreas. As células mais abundantes e maiores do fígado são os hepatócitos, que produzem e destroem certas moléculas para fornecer energia ao corpo. Outras células ajudam o fígado a funcionar. As células de Kupffer são as “guardiãs” do fígado que comem bactérias estranhas. As células estreladas hepáticas, em forma de estrela, armazenam vitamina A, que têm a aparência de gotas brilhantes dentro delas. As células estreladas hepáticas também ajudam a produzir as proteínas que compõem a estrutura do fígado. As células endoteliais sinusoidais cobrem os abundantes vasos sanguíneos do fígado. 

Figura 1. A estrutura do fígado. A. O fígado é o maior órgão localizado no abdome. Em verde, vemos o sistema de vasos (árvore biliar): a bile vai do fígado à vesícula biliar e em seguida chega ao intestino delgado, onde os nutrientes são absorvidos. B. Se observarmos uma fatia do fígado ao microscópio, veremos fileiras das células mais abundantes e maiores, os hepatócitos.
Note que cada hepatócito tem pequenos canais por onde a bile passa ao sair do fígado para a vesícula biliar e o intestino delgado. Outras células importantes são as células de Kupffer, que desempenham funções de defesa e estão localizadas nos espaços entre fileiras de hepatócitos, as quais estão alinhadas por uma camada de células endoteliais sinusoidais. As células estreladas hepáticas estão localizadas no estreito espaço entre os hepatócitos e as células endoteliais sinusoidais. Os glóbulos vermelhos também são mostrados entre as camadas de hepatócitos.

A esta altura, espero que você já tenha percebido que o fígado é um órgão essencial; ninguém pode sobreviver sem ele. O fígado possui mecanismos interessantes para se proteger de diversas lesões e doenças. 

O que é a regeneração hepática?

Em condições normais, dizemos que o fígado é um órgão quiescente. Isso significa que, se você o observar ao microscópio, poderá encontrar apenas uma célula se dividindo entre milhares de outras! No entanto, se o fígado estiver danificado fisicamente (por exemplo, uma ferida) ou quimicamente (por drogas ou álcool), suas células serão forçadas a se dividir e crescer. Esse fenômeno é conhecido como regeneração hepática e é até mencionado na mitologia grega. O mito mais popular que se refere a esse fenômeno é o de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses. Sua punição foi ficar acorrentado nas montanhas do Cáucaso, onde uma águia se alimentava de seu fígado todos os dias. 

Embora as pessoas saibam há muito tempo que o fígado se regenera, só nos anos 1900 esse fenômeno foi estudado e constatado em todos os mamíferos. Para estudar a regeneração hepática, em 1931, Higgins e Anderson realizaram uma experiência em ratos na qual os dois lóbulos maiores do fígado foram removidos com muito cuidado [2]. Trabalhar com animais envolve o uso de instrumentos limpos, anestesia e tratamento respeitoso. Como o fígado tem muitos vasos sanguíneos, para evitar sangramentos, os principais vasos do órgão foram amarrados com um fio especial.

Higgins e Anderson descobriram que o fígado do rato voltou ao seu tamanho normal em sete dias. Até hoje, essa ainda é a forma mais utilizada pelos cientistas quando estudam a regeneração hepática. Graças a esses experimentos, somos capazes de entender que tipo de genes, hormônios e proteínas do fator do crescimento participam do processo de regeneração hepática. 

Embora tenhamos chamado o novo crescimento do fígado de “regeneração hepática”, essa não é realmente uma descrição precisa do que acontece. O termo “regeneração”, na verdade, descreve o processo pelo qual os animais substituem uma parte inteira do corpo. Por exemplo, se um lagarto perde sua cauda enquanto foge de um predador, ela pode voltar a crescer. Isso não acontece com o fígado – se alguém perdesse todo o fígado, não conseguiria fazer crescer um novo. Assim, embora continuemos a chamá-la de “regeneração hepática”, o termo mais preciso para o que ocorre no fígado é hiperplasia compensatória [3].

Esse termo pode parecer complicado, mas significa um aumento no tamanho do fígado causado por um aumento no número de células. Para se dividirem, as células do fígado precisam “acordar” ou, como os cientistas dizem, as células precisam se tornar “ativadas”. O processo de regeneração do fígado acontece em três fases (Figura 2). Durante as três fases, todas as células trabalham como uma equipe e se comunicam umas com as outras. Essa comunicação é o que diz às células do fígado para sair da quiescência e começar a se dividir. Minutos depois que o fígado detecta danos, os genes dos núcleos das células do fígado enviam sinais para preparar as células para a divisão. Essa é chamada de fase de iniciação. 

Durante a fase de proliferação, as células do fígado se dividem. A divisão celular continua até que o fígado recupere seu tamanho normal, depois a fase terminal é alcançada e as células do fígado param de se dividir. Enquanto tudo isso está acontecendo, o fígado ainda precisa desempenhar todas as suas funções normais para manter o animal vivo e saudável.

Figura 2. Fases do processo de regeneração do fígado.  A. As células do fígado são normalmente quiescentes, isto é, não se dividem, mas após uma lesão se tornam ativadas e a regeneração do fígado começa. O processo de regeneração acontece em três fases: iniciação, proliferação e terminal. B.  Durante a fase de iniciação, as células começam a mudar (lembre-se: há uma constante comunicação entre os diferentes tipos de células durante todo o processo). C. Durante a fase de proliferação, o DNA é replicado e mais proteínas são produzidas; depois, as células do fígado se dividem. D. Quando o fígado está próximo do seu tamanho, ocorrem sinais de parada que marcam a fase terminal e as células param de se dividir. 

Como o fígado sabe quando deve parar de crescer? Essa é uma boa pergunta, e podemos dizer que o tamanho do fígado é um fator muito importante. O fígado representa 3% do corpo e essa proporção tende a se manter constante, independentemente do tamanho do corpo. Se você quiser conhecer o tamanho de seu fígado, multiplique seu peso por 0,03! A mesma proporção se aplica a outros mamíferos. Assim, se um cão pequeno recebe o fígado de um cão grande, esse fígado crescerá de acordo com o corpo do cão menor.

Alguns cientistas deram o nome de “hepatóstato” (como em “termóstato”, com “hepato” significando fígado) para o sistema que regula o tamanho do fígado. Em geral, podemos imaginar que o hepatóstato contém um conjunto de proteínas que enviam sinais de parada ao fígado, para que ele não cresça mais. Observe que as proteínas do tipo “pare” têm efeitos opostos às que atuam na fase de iniciação (aquelas que dão a ordem para “dividir”). Os cientistas precisam trabalhar mais para entender como o hepatóstato é controlado e os fatores que o afetam. 

Por que o conhecimento sobre a regeneração hepática é útil?

Muito do conhecimento produzido pelos cientistas pode ser usado para resolver problemas específicos a curto ou longo prazo. Como a regeneração hepática pressupõe um crescimento bem controlado, podemos usar nosso conhecimento dessa regeneração para tentar entender outros tipos de crescimento, tais como a proliferação descontrolada que ocorre em células do câncer. 

Os médicos podem usar o conhecimento sobre regeneração hepática para ajudar pessoas com doenças ou lesões que comprometem esse processo. Em casos extremos, o paciente pode precisar de um transplante do órgão. Um fígado completo, ou partes dele, pode ser obtido de um doador morto e transplantado para os pacientes. Mas, agora que você sabe sobre a capacidade regenerativa do fígado, já entende por que é também possível a uma pessoa viva e saudável doar uma parte do seu a alguém que precisa de um transplante. O fígado do doador voltará a crescer! Embora esse tipo de transplante de doador vivo seja possível, não há doadores suficientes para atender ao alto número de pessoas que precisam de transplante de fígado. Neste momento, nos EUA, quase 15.000 pessoas precisam de um novo fígado [4]. 

Além disso, os cientistas estão trabalhando para projetar dispositivos que ajudem pacientes com certos problemas hepáticos. Esses dispositivos podem ajudá-los temporariamente enquanto esperam por um transplante, de maneira semelhante às máquinas de diálise usadas em pacientes com insuficiência renal [5]. A engenharia de tecidos é um ramo da ciência que também pode ajudar pacientes à espera de um transplante. A engenharia de tecidos usa métodos e materiais especiais para estimular o crescimento de fígados em laboratório. Na ausência de doadores, esses órgãos crescidos em laboratórios podem ser transplantados para pacientes a fim de melhorar ou substituir tecidos lesionados do fígado. 

Grande parte do conhecimento sobre o comportamento biológico das células hepáticas foi obtido estudando-se o fenômeno da regeneração hepática. Levando em consideração esse conhecimento, bem como o fato de que os doadores de fígado são escassos, outra estratégia da engenharia de tecido é “reciclar” o fígado inteiro ou uma pequena parte dele. O fígado de um doador morto pode ser usado, mas todas as células originais são removidas passando-se uma solução especial por seus vasos até que fique totalmente transparente (Figura 3).

Esse processo, chamado de descelularização, pode ser feito porque a estrutura tridimensional, ou matriz, que suporta os componentes celulares do fígado segue quase intacta. Veja na imagem os vasos sanguíneos bem-preservados da matriz do fígado. Desse modo, o fígado limpo pode receber novas células hepáticas de pessoas ou animais saudáveis e depois ser transplantado [6]. Esse processo foi bem-sucedido em várias espécies de mamíferos, mas é difícil. Limpar o fígado de um rato pode levar 48 horas; limpar um fígado humano completo pode levar até seis semanas! No entanto, um problema que precisa ser resolvido, após a descelularização, é obter células hepáticas saudáveis em número suficiente para reabastecer o fígado limpo.

Hoje, uma alternativa que está sendo estudada é a produção de células hepáticas a partir de células-tronco localizadas dentro ou fora do fígado. Mas essa é outra história. 

Figura 3. A. Como o fígado do rato parecia antes. B. Sua aparência depois de “limpo” ou com todas as células removidas. Imagem de um fígado decelularizado, cortesia do dr. Alejandro Soto-Gutierrez. 

Conclusão

Um dos objetivos deste artigo é informar aos jovens sobre o funcionamento do fígado no corpo, e descrever sua incrível capacidade de responder a diferentes lesões. Outro objetivo é divulgar a pesquisa científica que vem sendo feita para melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas por doenças severas no fígado. Graças a essa informação, espero que você entenda o papel crítico que seu fígado desempenha na saúde de seu corpo e a importância de cuidar dele por toda a vida. 

Glossário

Desintoxicação: Processo graças ao qual substâncias tóxicas são removidas do corpo. 

Árvore biliar: Conjunto de vasos por onde a bile viaja do fígado para a vesícula biliar. 

Quiescente: Fase em que as células não estão se dividindo. 

Hiperplasia compensatória: Processo pelo qual o fígado, após ser danificado, restaura o tamanho original aumentando o número de suas células. 

Decelularização: Processo realizado para remover as células de um tecido/órgão e conservar a matriz, que pode ser recarregada com células saudáveis. 

Agradecimentos

O autor agradece ao dr. Alejandro Soto-Gutierrez, que trabalha na Universidade de Pittsburg, PA, EUA, por compartilhar a foto de um fígado decelularizado e ao sr. Patrick Weill, que ajudou na edição em inglês. 

Referências 

[1] Tsung, A. e Geller, D. A. 2011. “Gross and cellular anatomy of the liver.” Em Molecular Pathology of Liver Diseases, ed. S. P. S. Monga. Pittsburgh, PA: Springer Science + Business Media, LLC. pp. 3–6.

[2] Higgins, G. M. e Anderson, R. M. 1931. “Experimental pathology of the liver. I. Restoration of the liver of the white rat following partial surgical removal.” Arch. Pathol. 12:186–202.

[3] Columbano, A. e Shinosuka, H. 1996. “Liver regeneration versus direct hyperplasia.” FASEB J. 10:1118–28. 

[4] Site do U.S. Department of Health and Human Services. Organ Procurement and Transplantation Network (OPTN-HRSA). Disponível em: http://optn.transplant.hrsa.gov (acessado em 14 de março de 2017). 

[5] Lee, S. Y., Kim, H. J. e Choi, D. 2015. “Cell sources, liver support systems and liver tissue engineering: alternatives to liver transplantation.” Int. J. Stem Cells 8:36–47. DOI: 10.15283/ijsc.2015.8.1.36.

[6] Uygun, B. E., Soto-Gutierrez, A., Yagi, H., Izamis, M. L., Guzzardi, M. A., Shulman, C. et al. 2010. “Organ reengineering through development of a transplantable recellularized liver graft using decellularized liver matrix.” Nat. Med. 16:814–20. DOI: 10.1038/nm/2170.

Citação

Delgado-Coello, B. (2017). “Why is the liver so amazing?”  Front. Young Minds 5:38. DOI:10.3389/frym. 2017.00038.

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