Ideias fundamentais Química e materiais 26 de julho de 2023, 15:44 26/07/2023

Simulações computacionais a serviço da biologia

Autores

Jovens revisores

Ilustração de duas mulheres mexendo em computadores e acessando conteúdos diferentes. 

Resumo

A simulação computacional é uma ferramenta de pesquisa importante no mundo científico de hoje. Os computadores nos permitem realizar cálculos que imitam o comportamento de sistemas complexos (biológicos) de maneiras inviáveis de outra forma. Você pode pensar nessas simulações como um jogo de computador onde se cria um mundo virtual que funciona de acordo com certas regras (por exemplo, físicas). Enquanto jogamos, aprendemos as regras que regem esse mundo virtual e seu ambiente, mas também até onde os afetamos como jogadores.

Neste artigo, explicarei como usamos as simulações computacionais no mundo da biologia estrutural para estudar a estrutura e a função das moléculas. Também descreverei como, a meu ver, poderíamos usar ideias do mundo da biologia e simulações computacionais para melhorar a sociedade em que vivemos.

O professor Levitt ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2013 pelo desenvolvimento de modelos em multiescala para sistemas químicos complexos. 

Entrevista e colaboração de Noa Segev, formado no Grand Technion Energy Program, Technion, Israel Institute of Technology, Haifa, Israel. 

O que é uma simulação computacional?

Uma maneira simples de entender uma simulação computacional é pensar nos jogos de computador. Imagine, por exemplo, um jogo de aventura no qual seu personagem anda pelo ambiente realizando diversas ações. Para que o jogo pareça realista, o computador deve construir um mundo virtual que se comporte como o mundo real. Por exemplo, se você chutar uma bola durante o jogo, o computador deverá usar a equação física apropriada (a equação de movimento de Newton, neste caso) para calcular o movimento da bola e criar uma simulação realista do caminho físico que ela percorre (Figura 1).

Pelo mesmo princípio, o computador pode simular outros processos da vida real, desde que conheçamos as leis físicas que os regem. Ou seja, não só as leis que regem o movimento dos objetos podem ser simuladas, como vimos no exemplo acima, mas também processos mais complexos, como o clima, reações químicas e ainda toda uma variedade de fenômenos como o dobramento de proteínas, que abordaremos a seguir. 

Figura 1. Um exemplo de simulação computacional implementada em jogos de computador. A figura foi retirada do jogo online “Fortnite”. O desafio é lançar a bola de forma que ela atinja os objetos da sala quinze vezes antes de cair no chão. Esse jogo é na verdade uma simulação das leis físicas. Para apresentar visualmente o movimento da bola no jogo de forma realista, o computador precisa calcular o caminho físico da bola com base nas equações físicas – as equações do movimento de Newton. Em outras palavras, o computador simula as leis físicas e apresenta os resultados na tela. Adotando o mesmo princípio, o computador pode simular processos diferentes na natureza, tais como o tempo ou processos biológicos, para ajudar-nos a entendê-los melhor. (Fonte: Forbes)

O que podemos aprender com simulações computacionais?

Pensemos em um jogo de aventura, como Assassin’s Creed. Supondo que sua missão ocorra em Florença, Itália, você caminha por essa cidade usando uma simulação computacional de suas ruas. Ao caminhar, vê várias casas e locais históricos, como a bela catedral chamada Duomo. Depois de muitas horas jogando esse jogo, você saberá muito sobre a geografia de Florença. Graças a esse conhecimento, poderia caminhar pela verdadeira Florença se sentindo familiarizado com ela, pois identificaria os diferentes locais que encontrou no jogo do computador. Isso significa que o jogo forneceu a você um conhecimento real da própria cidade, mesmo que você nunca a tenha visitado.

Esse aprendizado por meio de simulações computacionais é um processo seguro – você não teme se machucar durante o jogo, então pode se permitir jogadas que não ousaria realizar na vida real. Dependendo do jogo, às vezes existem até ações que não podem ser realizadas na vida real, mas acontecem na tela do computador (como o poder de voar ou o encontro com criaturas imaginárias). 

Esse princípio de aquisição de conhecimento por meio de simulações computacionais também é usado no mundo científico: construímos o modelo de um processo físico ou químico que estamos estudando e depois o simulamos no computador. O modelo é baseado nas equações matemáticas que descrevem o processo (como na Figura 1, onde utiliza as equações das leis de Newton que governam o comportamento físico de uma bola).

O computador nos permite visualizar como o processo se desenrola no tempo, para que possamos examinar se os resultados da simulação se ajustam ao processo do mundo real. Caso os resultados se ajustem, concluímos que o modelo é bom e pode ser usado para a melhor compreensão do fenômeno investigado. Caso os resultados do computador não se ajustem aos resultados do mundo real, concluímos então que o modelo precisa ser revisado. Modificar o modelo nos ajuda a identificar erros em nossa compreensão do processo que estamos estudando.

Como uma simulação não é perigosa, podemos tentar todos os tipos de modelos e possibilidades que talvez sejam até impossíveis de explorar em situações da vida real. Às vezes, há surpresas durante essas simulações computacionais e descobrimos que um modelo antes considerado “absurdo” na verdade descreve melhor o fenômeno sob investigação. Os modelos de computador nos dão a liberdade de ser criativos e chegar a explicações da realidade que de outra forma seriam difíceis de encontrar. 

Na medida

Ao usar simulações computacionais na ciência, um dos princípios mais importantes é aquele que chamo de “na medida”. De acordo com esse princípio, precisamos construir um modelo que não seja nem muito simples nem muito complicado. Se o modelo for muito simples, não descreveremos o fenômeno que desejamos investigar com detalhes suficientes. Em contrapartida, se o modelo for muito complicado, não seremos capazes de usá-lo para obter informação que possa contribuir para nossa compreensão. Penso que cada pesquisador deveria entender o que está fazendo em um nível básico e simples, a fim de explicar suas pesquisas para os outros.

Se alguém me diz que descobriu algo grande, mas muito complicado de explicar, fico cheio de dúvidas e não me convenço de que ele, realmente, entenda o que está estudando. Por isso, busco sempre o modelo mais simples, que seja bom o suficiente (como você verá na Figura 2 abaixo, sobre o dobramento de proteínas). Acredito que essa seja uma ideia muito geral para a vida – cada explicação tem seu próprio nível “na medida”. No entanto, aconselho você a buscar sempre a explicação mais simples que esclareça o que está tentando entender – nem mais nem menos.

Figura 2. O dobramento de proteínas.  (A) Um modelo simples para simular uma proteína usando um computador. A proteína é descrita como um colar composto por contas de diferentes características. Cada cor descreve um tipo diferente de conta e cada conta descreve um conjunto de átomos com suas interações (como você pode ver nos círculos acima e abaixo das contas). (Tirado de Cragnell et al. [2].) (B) Um modelo simples de proteína na forma de um colar de contas, explicado pelas equações matemáticas que descrevem as interações entre contas de cores específicas. Esse modelo é suficiente para descrever o dobramento de proteínas em formas 3D estáveis. (Tirado de Researchgate) 

Simulações computacionais na biologia estrutural

Mostrarei agora como usamos as simulações computacionais e o princípio “na medida” para entender um fenômeno muito importante na biologia – o dobramento de proteínas. A pesquisa da estrutura das proteínas é parte de um campo chamado biologia estrutural. Pensemos em como os organismos vivos funcionam. Dentro do corpo, existem muitas estruturas semelhantes a cordas chamadas proteínas. Essas proteínas se dobram para criar formas tridimensionais. Cada proteína tem sua forma própria, idêntica em cada ser vivo. O incrível é que essas proteínas em formas 3D desempenham todas as funções vitais – constroem o corpo, passam por reações químicas, movem os músculos e digerem os alimentos. Portanto, entender o processo de dobramento que determina a forma final da proteína é extremamente importante. 

As proteínas são moléculas grandes, feitas de milhares de átomos com muitas interações. Fazer uma simulação computacional para visualizar todos esses átomos e suas interações dentro de uma proteína seria muito complicado. No início dos anos 1970, estudei esse problema com Arieh Warshel e em 1975 publicamos nossas descobertas em um importante jornal científico [1]. Descobrimos que poderíamos construir um modelo simples de uma proteína vista como um colar composto por vários tipos de contas, todos com características um pouco diferentes (Figura 2A). Cada conta representa um conjunto de (digamos dez) átomos e suas interações. Contas específicas (as vermelhas, por exemplo) são atraídas por outras igualmente específicas (as azuis, por exemplo).

Esse modelo simples conseguiu fornecer uma explicação adequada e útil para o dobramento de proteínas (Figura 2B) e foi aceito como referência para muitas outras computações moleculares [2]. Essas simulações nos permitem visualizar, quando não prever, a estrutura tridimensional de proteínas diferentes e entender melhor sua atividade biológica. Podemos também recorrer ao computador para desenhar moléculas que venham a ser usadas como remédios. 

Simulações computacionais além da biologia – visão do futuro

Diversidade, diversidade, diversidade

Os sistemas biológicos enfrentam um único desafio: precisam estar preparados para encarar situações inesperadas que talvez ocorram no futuro. Como um sistema qualquer pode ser preparado para cenários que nunca foram experimentados antes? A resposta é simples: por meio da diversidade. A natureza tenta criar um grande leque de variações dentro de um sistema para que este consiga se adaptar e modificar seus processos diante de desafios imprevistos. 

Nos animais, por exemplo, o descendente recebe uma metade aleatória da informação genética (DNA) de cada um de seus pais, de modo que é único e aumenta a diversidade da espécie. Assim, em um grupo inteiro de animais, a prontidão para responder a possíveis cenários futuros aumenta, fortalecendo com isso a adaptabilidade coletiva da espécie a situações inesperadas. 

Penso que esse princípio de diversidade ensinado pela biologia é, também, aplicável a muitos outros aspectos da vida. Por exemplo, uma sociedade forte é uma sociedade diversificada, na qual pessoas diferentes, de diferentes origens sociais, sexos e educação, devem aprender a viver juntas, aceitando-se mutuamente. Com efeito, na escola ou em casa, sempre precisamos encontrar meios de negociar com as pessoas à nossa volta. Às vezes, temos dificuldades em enfrentar situações sociais complexas, difíceis, e certamente alguns de nós somos melhores do que outros para resolver os conflitos que encontramos.

Além disso, nossa vida é variada, com altos e baixos e situações inesperadas. Um futuro melhor e uma sociedade estável dependem de nossa capacidade de controlar com sucesso as diversidades da vida. Mas enfrentar uma gama diversificada de situações pessoais e sociais requer uma inteligência emocional bem desenvolvida. E acredito que podemos usar simulações computacionais para aprimorar nossa inteligência emocional. 

Simulações computacionais para o desenvolvimento da inteligência emocional

Uma simulação computacional para aprimorar a inteligência emocional pode ser na forma de um jogo interativo que imite uma situação social difícil e permita que você busque diferentes estratégias para resolver o problema (Figura 3). Por exemplo, alguém o insulta na classe. Como você reagiria para garantir que não vá anular toda possibilidade de ainda cooperar com essa pessoa? Usando uma simulação computacional, verá os resultados de uma gama diversificada de ações que pode realizar. Esse tipo de atividade, praticada individualmente ou como parte do sistema educacional, sem dúvida desempenha um papel importante ao potencializar o desenvolvimento da inteligência emocional. 

Figura 3. Simulação computacional para o desenvolvimento da inteligência emocional. As simulações computacionais podem nos ensinar muita coisa sobre situações complexas da vida. Imagine um jogo como o aqui mostrado, que nos permite vivenciar uma situação social complexa e tentar diferentes modos de reagir e responder a ela. Esse jogo pode prepará-lo para se haver melhor com as situações da vida real e avaliar as respostas de pessoas diferentes – desenvolvendo assim uma inteligência emocional mais sofisticada. (Tirado de Rockpapershotgun) 

Recomendações para as mentes jovens

Quero compartilhar com você algumas ideias que fui adquirindo ao longo de minha carreira científica e na vida em geral. Primeiro, é importante você fazer aquilo de que gosta, não aquilo que seus pais ou a sociedade desejam que você faça: tente fazer o que for realmente de seu gosto. Não há nada melhor na vida do que uma vida na qual fazemos o que de fato nos agrada.

Em segundo lugar, não desista. Acredite em si mesmo e não fique muito preocupado com o sucesso ou o fracasso. Lembre-se de que toda coisa ruim encerra algo de bom e toda coisa boa encerra algo de ruim: aprendemos com ambas. Continue acreditando em si mesmo e por fim os outros também acreditarão em você.

Terceiro, tente ser original. Cada um de nós é especial e exclusivo. Tente expressar sua singularidade e não apenas copiar os outros.

Quarto, esteja pronto para cometer erros. Sempre digo que um bom cientista comete erros 90% do tempo e um cientista ótimo comete erros 99% do tempo. Por quê? Porque, se você é excelente em seu campo, procura resolver os problemas mais difíceis. Se não está preparado para cometer erros, nunca enfrentará os maiores desafios. Quinto, seja uma pessoa amável – generosa e receptiva. Essas são qualidades importantes a cultivar. 

A última coisa que vou recomendar a você está relacionada ao planejamento. Acho que, na vida, embora seja bom planejar com antecedência, um excesso de planejamento pode levar à decepção. A vida nunca se desenrola exatamente como planejamos e muitas vezes acontecem coisas surpreendentes, que não fazem parte do plano. Se você estiver muito ocupado com seu plano original, nem perceberá as novas oportunidades. O ideal é um delicado equilíbrio entre seguir planos e estar pronto para responder às surpresas que a vida traz. 

Materiais adicionais

Michael Levitt Explica Seu Trabalho para Jovens Estudantes – Youtube (com legendas em português).

Glossário

Simulação computacional: Ferramenta para realizar estudos científicos com base em computação (uso de um computador). Pense em simulações computacionais como jogos de computador; elas ajudam os cientistas a aprender e melhor entender o fenômeno que investigam. 

Proteínas: Moléculas biológicas grandes que desempenham todas as funções da vida – constroem o corpo, tomam parte nas reações químicas, digerem os alimentos, etc. Pense nas proteínas como colares compostos de diferentes tipos de contas, que se dobram em formas 3D únicas, com cada proteína tendo sua própria forma dobrada. 

Biologia estrutural: Campo de pesquisa que estuda a estrutura de moléculas grandes (macromoléculas) construídas a partir de conjuntos de moléculas menores. Pesquisadores tentam entender os princípios pelos quais as moléculas se dobram para criar uma determinada estrutura em 3D. 

Inteligência emocional: Capacidade de identificar emoções em si e nos outros, entendê-las e usá-las para interagir melhor com diferentes pessoas. 

Conflito de interesses

O autor declara que a pesquisa foi conduzida sem qualquer relação financeira ou comercial capaz de gerar um conflito de interesses. 

Referências

[1] Levitt, M. e Warshel, A. 1975. “Computer simulation of protein folding.” Nature 253:694–8. DOI: 10.1038/253694a0. 

[2] Cragnell, C., Rieloff, E. e Skepö, M. 2018. “Utilizing coarse-grained modeling and Monte Carlo simulations to evaluate the conformational ensemble of intrinsically disordered proteins and regions”. J. Mol. Biol. 430:2478–92. DOI: 10.1016/j.jmb.2018.03.006.

Citação

Levitt, M. (2021). “Computer simulations in service of biology.” Front. Young Minds. 9:603629. DOI: 10.3389/frym.2020.603629.

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