Ideias fundamentais Neurociências e Psicologia 6 de março de 2024, 14:44 06/03/2024

O que os movimentos podem nos ensinar sobre a função cerebral?

Autores

Jovens revisores

Na ilustração, um cérebro humano e um menino encontram-se frente a frente. O cérebro aponta para uma rosquinha disposta em um dos dois pratos colocados entre eles, enquanto o menino está prestes a pegá-la. Um homem de jaleco branco observa atentamente a cena. Na mesma bancada que suporta o prato com a rosquinha, um computador exibe uma mão interagindo com duas opções

Resumo

As pessoas fazem milhares de movimentos todos os dias, que nos permitem ir de um lugar a outro e interagir com o mundo à nossa volta. O cérebro controla os movimentos do corpo e pode, de forma surpreendente, orientá-lo a se mover numa fração de segundo. Embora o cérebro possa mover o corpo rapidamente, a maioria de nossos movimentos parece muito suave e eficiente. Alguns são fáceis ou automáticos, como piscar os olhos, enquanto outros são mais desafiadores, como estender o braço para escolher entre dois brinquedos. Os cientistas sabem que o cérebro funciona de forma distinta para efetuar os diferentes tipos de movimento. Escondidas em nosso movimento, porém, estão informações valiosas que podem fornecer pistas sobre o funcionamento do cérebro. Os cientistas estão usando uma recente novidade tecnológica, chamada rastreamento de movimento, para compreender melhor certas funções cerebrais como a tomada de decisões, a atenção e a memória.

Como os movimentos se relacionam com o cérebro?

Nós dependemos do nossos corpos para nos mover e interagir com o mundo à nossa volta. Você sabe, sem dúvida, que o cérebro controla a capacidade de movimento. Até atividades simples, como pegar um objeto ou correr por um parque infantil, exigem que o cérebro coordene rapidamente muitos movimentos corporais. Movimentos rápidos podem ocorrer porque o cérebro e o corpo estão intimamente ligados. Os cientistas dão a esse vínculo o nome de conexãocérebrocorpo. Graçasà conexão cérebro-corpo, podemos passar sem problemas de um momento para o seguinte. Por exemplo, ao andar de bicicleta, seu cérebro se comunica continuamente com seu corpo, dizendo-lhe como permanecer firme enquanto pedala, vira e para. A função de seu cérebro é atualizar constantemente as ações de seu corpo na bicicleta, para que você não caia. 

Você pode imaginar que movimentos simples, como estender a mão, sejam fáceis de fazer. Nem sempre. Por exemplo, imagine escolher entre duas sobremesas na sua frente. Quando você escolhe entre elas, não é apenas seu cérebro que dá a seu corpo um único apenas para pegar uma das sobremesas – há uma conversa ativa entre o corpo e o cérebro!

Podemos experimentar isso agora mesmo. Feche os olhos e imagine um biscoito e um rosquinha. A rosquinha cheira bem? O biscoito é macio ou duro? Você prefere uma das sobremesas ou essa é uma competição acirrada entre as duas? Todos esses pensamentos ocorrem rapidamente e seu cérebro logo decide qual sobremesa você prefere. Por mais rápidos que esses pensamentos sejam, muitas vezes você começa a estender o braço antes de decidir qual sobremesa deseja mais. Como o cérebro e o corpo estão muito intimamente ligados, os cientistas acreditam que estudar os detalhes de nossos movimentos pode ajudar-nos a compreender o modo de funcionamento do cérebro. 

Como os cientistas estudam o cérebro por meio dos movimentos

Os movimentos, e o modo como se relacionam com as funções cerebrais, foram estudados principalmente observando-se o objetivo em direção ao qual nos movemos, e quanto tempo levamos para chegar lá. No entanto, você sabia que é muito raro fazermos exatamente o mesmo movimento duas vezes, mesmo que ele vise ao mesmo objetivo? Por exemplo, cada vez que você abre uma porta, quase sempre há pequenas diferenças no trajeto que sua mão percorre até a maçaneta. Embora muitos de nossos movimentos possam parecer idênticos, na verdade existem pequenas mudanças a cada instante (menos de uma fração de segundo!) na direção deles. 

É difícil observar, a olho nu, essas mudanças pequenas e rápidas. Os cientistas descobriram uma maneira de observá-las usando um método chamado rastreamento de movimento. Há algumas maneiras para rastrear movimentos. Os cientistas podem observá-los na tela de um computador usando um mouse para acompanhar seus trajetos. Também podem usar sensores colocados na mão da pessoa. À medida que a mão se move de um local para outro, os sensores rastreiam o trajeto que a mão percorre. O rastreamento de movimento pode fornecer muitas informações detalhadas sobre movimentos que nossos olhos não conseguem ver.

Por exemplo, ele pode mostrar a curvatura do movimento da mão, que é quanto o trajeto real da mão difere do trajeto mais reto possível (Figura 1). Quando a mão se curva menos, o trajeto é mais reto e mais eficiente. Quando os movimentos têm curvaturas acentuadas, isso em geral significa que a pessoa está menos certa quanto à direção do movimento que quer executar. 

Figura 1. Trajeto de dois movimentos diferentes. A curvatura nos diz quanto o trajeto de um movimento é diferente do trajeto mais reto (mais eficiente) possível. (A) O trajeto do movimento (linha verde) se afasta um pouco do trajeto mais eficiente (linha azul). Isso, de um modo geral, significa que a pessoa está mais confiante na resposta correta. (B) Esse trajeto se afasta bastante do trajeto mais eficiente: significa que a pessoa está menos confiante na resposta correta. 

Por que é importante acompanhar e compreender os detalhes de nossos movimentos? Curiosamente, os trajetos que percorremos quando nos movimentamos se relacionam com aquilo que nosso cérebro está fazendo. Usando o rastreamento de movimento com métodos de imageamentocerebral, os cientistas descobriram que o tipo de trajeto que um movimento escolhe pode estar relacionado à atividade do cérebro durante esse movimento [1, 2]. A atividade cerebral pode revelar com que intensidade uma pessoa está pensando em determinada coisa (a cor vermelha, por exemplo) em comparação com outra (a cor azul). 

Compreenderemos o que isso significa se voltarmos ao nosso exemplo anterior, no qual você escolhia pegar um biscoito ou uma rosquinha. Imagine que gosta de ambos, mas mais de rosquinhas que de biscoitos. Os cientistas demostraram que, em casos como esse, sua mão pode curvar-se ligeiramente em direção ao biscoito porque você ainda está concentrado nele e pensando em comê-lo. No entanto, a mão se volta para a rosquinha porque esta se torna a escolha preferida (Figura 2).

Esse tipo de curvatura de movimento ocorre devido à competição que acontece no cérebro na hora de escolher qual sobremesa pegar e comer. Se a escolha fosse entre sua comida favorita e outra menos favorita, então o movimento da mão provavelmente teria muito pouca curvatura em relação à favorita. Ou seja, seu movimento seria mais eficiente, já que a comida de que você menos gosta não compete (nem de longe), em termos de gostar, com a favorita. 

Figura 2. Diferença entre os movimentos de competição altos e baixos. Cada exemplo mostra um trajeto da mão rumo à rosquinha; no entanto, há diferenças significativas entre os trajetos. (A) Esse movimento em direção à rosquinha é direto e eficiente porque há uma clara preferência pela rosquinha em relação ao biscoito. Isso significa que há baixa competição. (B) Esse movimento se curva em direção ao biscoito porque há grande competição entre as duas sobremesas, sugerindo que foi mais difícil para a pessoa escolher. 

Movimento e categorização

Nossos cérebros estão constantemente recebendo informações do mundo à nossa volta. Uma das formas de o cérebro organizar todas essas informações é por meio da categorização, que é a maneira de classificar conceitos em grupos. Por exemplo, como você descreveria um cachorro para alguém que nunca viu um? Poderia descrevê-lo como algo que se enquadra nas categorias de animais, mamíferos ou bichos de estimação. A pessoa que nunca viu um cachorro usaria essas categorias para ter uma ideia melhor do que é um cachorro. Portanto, a categorização é importante para compartilhar ideias e conhecimento. A categorização também é importante para aprendermos novos conceitos, relacionando-os com aquilo que já sabemos. 

Os cientistas estudam como o cérebro categoriza as informações examinando os trajetos do movimento de uma pessoa enquanto ela as classifica [3]. Por exemplo, imagine que lhe perguntassem se uma girafa se enquadra melhor na categoria de bicho de estimação ou de animal selvagem. À medida que sua mão se movesse para decidir como categorizar a girafa, seu movimento provavelmente seria direto para a escolha de “animal selvagem”. Uma girafa não cabe na maioria das casas e muito menos poderia ser um bicho de estimação! 

Portanto, não há competição que atraia o movimento da sua mão em direção à categoria de “bicho de estimação”. E quanto a um papagaio? Os papagaios são mais difíceis de categorizar porque podem ser encontrados em casa ou na natureza. A forma como você categoriza um papagaio depende da categoria na qual (“bicho de estimação” ou “animal selvagem”) você acha que ele se encaixa melhor. Quando você escolhe uma das categorias, seu movimento pode se curvar mais porque há competição entre elas. Com base na quantidade de curvatura no trajeto do movimento, os cientistas podem descobrir detalhes sobre como o cérebro categoriza as informações. 

Movimento e lembranças

A memória é outra função do cérebro que desempenha um papel importante em quase tudo que fazemos. A memória nos permite lembrar momentos passados, refletir sobre eles, aprender com a experiência, ampliar nosso conhecimento e definir nossas personalidades. A eficiência do cérebro na formação de lembranças pode ter uma grande influência em nossa vida cotidiana.

Os cientistas usaram o rastreamento de movimento para estudar a intensidade com que nossas lembranças são formadas [4]. Usando o rastreamento de movimento, podemos registar o trajeto que a mão percorre à medida que se move rumo à opção “Lembro-me” ou à opção “Não me lembro” (Figura 3 A).

Por exemplo, procure se lembrar do que você comeu ontem no café da manhã. Conseguiu? Se conseguiu e estiver muito confiante, então o trajeto que sua mão seguir para responder que se lembra deve ser direto e eficiente (Figura 3B). Ao contrário, se você não estiver bem certo do que comeu ontem no café da manhã, mas ainda assim escolher a opção “Lembro-me”, então seu movimento poderá se curvar na direção de “Não me lembro” (Figura 3C). Haverá mais curvatura porque, mesmo se lembrando do que comeu, a lembrança não é muito forte. Esse método permite que os cientistas estudem os movimentos para obter informações sobre como o cérebro forma as lembranças. 

Figura 3. Os movimentos podem nos mostrar a força da lembrança. (A) Imagine que lhe perguntem o que você comeu ontem no café da manhã. (B) Se você estiver muito confiante em sua memória e se lembra bem do que comeu, então sua mão se moverá direta e eficientemente para o local “Eu lembro”. (C) Se você achar que se lembra, mas não estiver muito confiante, então é mais provável que sua mão se curve rumo à opção “Eu não me lembro” antes de chegar à opção “Eu me lembro”. Essa curvatura sugere que a lembrança do que você comeu ontem no café da manhã pode não ser forte. 

Conclusão

Ao usar técnicas como rastreamento de movimento, os cientistas aprenderam que o cérebro e o corpo estão intimamente ligados [5]. Os dados de rastreamento de movimento nos mostram que o cérebro se comunica com o corpo e atualiza os movimentos enquanto eles são realizados. Neste artigo, revisamos pesquisas que mostram que mudanças ocultas em nossos movimentos, de instante a instante, podem ajudar os cientistas a relacionar nossas ações com o funcionamento de nosso cérebro. Essas descobertas são emocionantes porque sugerem uma nova maneira de investigar como o cérebro funciona.

Trabalhos futuros poderão aplicar o rastreamento de movimento a uma ampla gama de áreas de pesquisa para investigar as funções cerebrais: por exemplo, como elas se desenvolvem ao longo do tempo e o que acontece de errado com certos distúrbios nos quais os movimentos são afetados, como a doença de Parkinson. Em resumo, os cientistas poderão usar o rastreamento de movimento para compreender melhor o cérebro e como interagimos com o mundo que nos rodeia. 

Glossário

Conexão cérebro-corpo: Caminhos que permitem a comunicação entre o cérebro e o corpo. 

Rastreamento de movimento: Método usado para rastrear o trajeto, a curvatura e a velocidade dos movimentos de um local para outro. 

Curvatura: Grau em que o trajeto real percorrido difere do trajeto mais reto possível. 

Imagem cerebral: Ferramenta que os cientistas usam para medir a atividade cerebral. 

Categorização: Modo como conceitos semelhantes são classificados em grupos ou categorias. 

Conflito de interesses

Os autores declaram que a pesquisa foi realizada sem nenhuma relação comercial ou financeira capaz de gerar um conflito de interesses. 

Referências

[1] Freeman, J. B., Ambady, N., Midgley, K. J. e Holcomb, P. J. 2011. “The real-time link between person perception and action: brain potential evidence for dynamic continuity.” Soc. Neurosci. 6:139–55. DOI: 10.1080/17470919.2010.490674.

[2] Stolier, R. M. e Freeman, J. B. 2017. “A neural mechanism of social categorization.” J. Neurosci. 37:5711–21. DOI: 10.1523/JNEUROSCI. 3334-16.2017.

[3] Dale, R., Kehoe, C. e Spivey, M. J. 2007. “Graded motor responses in the time course of categorizing atypical exemplars.” Mem. Cogn. 35:15–28. DOI: 10.3758/BF03195938.

[4] Papesh, M. H. e Goldinger, S. D. 2012. “Memory in motion: movement dynamics reveal memory strength.” Psychon. Bullet. Rev. 19:906–13. DOI: 10.3758/s13423-012-0281-3.

[5] Thelen, E. e Smith, L. B. 1996. A Dynamic Systems Approach to the Development of Cognition and Action. Cambridge, MA: MT Press. 

Citação

Kinder, K., DiMercurio, A. e Buss, A. (2022). “What can movements teach us about brain function?” Front. Young Minds. 10:697543. DOI: 10.3389/frym. 2022.697543. 

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