Quando vemos coisas que não existem: ilusões revelam como nosso cérebro elabora o que enxergamos
Autores
Christoph S. Herrmann, Micah M. Murray
Jovens revisores
Resumo
O que percebemos nem sempre é o que vemos. Partindo tanto das informações capturadas pelos olhos como também do conteúdo armazenado anteriormente, o cérebro elabora a percepção, e consegue lidar com situações de obstrução, ruído e ambiguidade.
O que percebemos nem sempre é o que vemos. A visão, e de um modo geral a percepção, não devem ser comparadas a uma câmera que tira fotos do mundo. Isso não é um defeito do nosso cérebro; ao contrário, mostra como o órgão elabora a percepção e tira vantagem de sua complexa interconectividade de um modo muito parecido ao modo como atuam as redes sociais. A elaboração da percepção não se baseia apenas nas informações capturadas pelos olhos, mas recorre aos dados armazenados no cérebro e “adivinha” a partir deles. Figuras que criam uma ilusão como a que aparece na Figura 1 são um exemplo de laboratório desse processo de elaboração e mostra muito bem como o sistema visual funciona. No mundo real, o sistema visual enfrenta situações de obstrução, ruído e ambiguidade (ou seja, quando não fica claro se determinadas partes do que vemos pertencem a um objeto ou a outro).
Se você fosse descrever o que vê na parte esquerda da Figura 1, diria provavelmente que há ali um triângulo branco por cima dos três discos pretos. Contudo, estritamente falando, apenas três segmentos de círculos pretos (semelhantes ao personagem de games pac-men) são mostrados. A percepção do chamado triângulo Kanizsa [1] é um fenômeno muito interessante do funcionamento de nosso sistema visual (e do de outras espécies também, de pássaros a macacos).
No caso do triângulo Kanizsa, o cérebro elabora a percepção de triângulo e efetivamente preenche as linhas entre as bocas dos pac-men, o que resulta na percepção de um triângulo branco que parece mais brilhante que o papel branco (pelo menos naquilo que é mostrado na Figura 1). Em muitos casos, vemos objetos no fundo (por exemplo, um gato) obstruídos por outros no primeiro plano (por exemplo, uma cerca) (Figura 2). Não obstante, o que percebemos é um gato completo e não partes dele separadas pelas tábuas da cerca. Para o cérebro humano é um desafio determinar quais partes pertencem ao mesmo objeto, pois as células nervosas do olho recebem informação apenas de partes pequenas e específicas do gato (algo assim como os pixels individuais de uma câmera digital).
Depois, o cérebro tem de elaborar o que vemos colocando juntos todos os pixels da maneira certa, um processo muitas vezes ajudado por nossas experiências daquilo que esperamos ver.
Figuras ilusórias têm sido usadas em pesquisa de neurociência para investigar o processo de elaboração da percepção visual [2]. A elaboração da percepção visual pelo cérebro humano se vale de pelo menos três características que atuam juntas.
Primeira: temos as conexões anatômicas, isto é, a “fiação”. Essas conexões não apenas descrevem o modo como a informação chega ao cérebro a partir dos olhos como explica de que maneira a informação circula no cérebro entre áreas visuais “altas” e “baixas” (Figura 3). Assim, elementos como nossas lembranças e experiências prévias de triângulos, e mesmo a palavra “triângulo”, auxiliam na percepção.
Essas conexões podem ser divididas em dois tipos. As que vêm do mundo exterior para dentro do cérebro, mais ou menos como uma correia de transmissão; são conhecidas como caminhos de alimentação para a frente porque a informação passa de um lugar a outro e vai, pela correia de transmissão, para o lugar seguinte (setas de cor cinza na Figura 3, embaixo). E há as que podem transitar entre pontos do cérebro, conhecidas como caminhos de retroalimentação, para trás ou para os lados (setas de cor laranja na Figura 3, embaixo).
Segunda: existem os chamados “campos receptivos” de neurônios, que podem ser melhor entendidos como semelhantes em tamanho aos pixels de uma câmera digital (Figura 2). Estruturas como a retina e o córtex visual primário possuem campos receptivos bem pequenos; seus pixels são diminutos e cada neurônio individual apenas “vê” uma porção bastante reduzida de uma cena. À medida que avançamos ao longo da cadeia anatômica dessa rede neuronal, a partir de áreas mais baixas do córtex visual como V1 até áreas mais altas desse mesmo córtex, esses campos visuais receptivos também se tornam maiores (círculos embaixo na Figura 3).
Por exemplo, algumas áreas visuais altas possuem campos receptivos tão grandes quanto nossa mão, quando esticamos o braço. Outras áreas visuais altas possuem campos receptivos tão grandes quanto uma casa. Como seria de esperar, quanto maior for o campo receptivo de um neurônio, mais “borrada” será sua “visão” do mundo. Entretanto, isso só está parcialmente correto pois diferentes neurônios partilham informação e “conversam” entre si, de modo que a imagem “vista” coletivamente por eles pode ficar mais nítida.
Isso nos leva à terceira característica: o tempo de que a informação precisa para ser comunicada e partilhada ao longo da “fiação” e das arquiteturas dos campos receptivos descritas acima. Por um lado, a informação é processada de maneira seriada e para a frente, lembrando uma esteira onde os automóveis são montados peça por peça em cada etapa sucessiva. Assim, a informação vem do mundo exterior para os olhos e daí para as áreas visuais baixas (também chamadas de córtex visual primário ou V1), localizadas na parte traseira do cérebro, de onde passa para sucessivas áreas altas do cérebro, que têm nomes como V2, V3 e V4 (aplicados à segunda, terceira e quarta áreas, respectivamente), as quais desempenham diferentes e às vezes altamente especializadas funções visuais (Figura 3).
Por exemplo, neurônios em V2 codificam características como profundidade de percepção, obtida da combinação de informações vindas dos dois olhos. Neurônios em V4 codificam, entre outras coisas, formas básicas e cores. Nas áreas altas, algumas das quais se localizam ao longo da parte inferior do lobo temporal do cérebro (área vermelha na Figura 3, em cima), codificam-se formas complexas como rostos ou edifícios.
Por outro lado, a informação é processada também em paralelo ou em sentido descendente, à semelhança de uma rede social ou um sistema de metrô. As linhas de uma rede de metrô podem ser consideradas parecidas com as conexões entre diferentes partes do cérebro; há uma complicada mistura de rotas diretas e indiretas entre duas localizações quaisquer, tanto na rede de metrô quanto no cérebro. As interseções podem ser vistas como centrais onde as informações são combinadas e integradas. Fato importante, assim como em um sistema de metrô, a informação pode ir para a frente e para trás, e diferentes “linhas”, funcionando ao mesmo tempo, podem ter velocidades diferentes, o que resulta em combinações de rotas de informação rápidas e lentas. Desse modo, a informação logo se “espalha” para diferentes pontos da rede.
O processamento de contornos ilusórios demonstra bem como nosso sistema visual elabora o que vemos. As etapas iniciais do processo são ativadas primeiro, e detectam os traços simples de uma imagem. Contudo, esses neurônios não “sabem” a que objetos pertencem os traços detectados, como no caso das bocas dos pac-men na Figura 1. Somente as etapas posteriores do sistema visual conseguem completar a tarefa e são as primeiras a detectar objetos complexos. Nesse sentido, as etapas posteriores atuam como um “mestre de obras” que dirige a construção da percepção e usa informações das etapas iniciais para, depois, refinar as percepções experimentadas. Para mais fenômenos de ilusão e o que eles nos contam sobre o cérebro, entre na página da internet de Bach [3].
A magia das ilusões não reside tanto naquilo que percebemos (embora isso também seja interessantíssimo) quanto no modo como elas revelam a capacidade de nosso cérebro de moldar percepções.
Agradecimentos
Este trabalho contou com o apoio de Micah M. Murray, da Swiss National Science Foundation (subvenções 310030B_133136 e 320000_120579, bem como do projeto SYNAPSY – The Synaptic Bases of Mental Disease, projeto nº 51AU40_125759, do National Center of Competence), além de Christoph S. Herrmann, da German Research Foundation (subvenções SFB/TRR 31 e Hearing4all). Agradecemos a Toralf Neuling pelo desenho das Figuras 1 e 3 (em cima).
Referências
[1] Kanizsa, G. 1976. “Subjective contours.” Sci. Am. 234:48–52. DOI: 10.1038/scientificamerican0476–48.
[2] Murray, M. M. e Herrmann, C. S. 2013. “Illusory contours: a window onto the neurophysiology of constructing perception.” Trends Cogn. Sci. 17:471–81. DOI: 10.1016/j.tics.2013.07.004.
[3] Bach, M. 2013. “105 visual phenomena & optical illusions.” Disponível em: www.michaelbach.de/ot/.
Citação
Herrmann, C. e Murray, M. (2013). “Seeing things thar are not there: illusions reveal how our brain constructs what we see.” Front. Young Minds. 1:6. DOI: 10.3389/frym.2013.00006.
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