Um quase-cristal, e não um quase-cientista
Autores
Jovens revisores
Classe “Nachshon” da 8ª série, escola “Makif Amit" , Israel
Resumo
A ciência dos materiais investiga a estrutura e as propriedades de diferentes materiais. Um desses materiais é o cristal. Os cristais são materiais sólidos com blocos de construção (átomos, íons ou moléculas) dispostos de uma maneira altamente organizada. Sal, quartzo e diamantes são exemplos de cristais. Nos cristais comuns, esses blocos de construção se organizam em um padrão repetitivo em todas as direções. Ao contrário, em cristais chamados quase-cristais, os blocos de construção se organizam de uma maneira não repetitiva. A descoberta dos quase-cristais provocou uma revolução na ciência da cristalografia e mudou nossa definição mais básica de cristal. Desde sua descoberta, muitas centenas de quase-cristais foram encontrados. Alguns deles têm propriedades físicas únicas e são úteis para uma grande variedade de aplicações.
O professor Shechtman ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2011 pela descoberta dos quase-cristais.
Entrevista e coautoria de Noa Segev, graduado no Programa de Energia Grand Technion, Technion, Instituto de Tecnologia de Israel, Haifa, Israel.
Como me tornei um cientista de materiais
Quando eu tinha sete anos, meu avô me deu um presente extraordinário: uma lupa! Fiquei muito feliz e comecei a andar pela cidade de Ramat Gan (em Israel) com ela. Olhava para tudo que encontrava – flores, insetos, areia e muitas outras coisas pequenas. Durante esse processo, apaixonei-me pelo mundo das miudezas. Alguns anos depois, quando estava na quinta série, um microscópio foi doado à nossa escola. Semana após semana, eu pedia para nosso professor trazer o microscópio para a sala de aula. Ele acabou fazendo isso e me convidou para ser o primeiro a usá-lo. Olhei para uma folha e pude ver o movimento da clorofila, uma pequena molécula dentro da folha responsável por sua cor verde. Desde então, não pude abandonar o microscópio.
Anos depois, durante meus estudos no Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), chegou às nossas instalações um microscópio excepcionalmente poderoso, chamado de microscópio eletrônico de transmissão (MET). Apaixonei-me por ele porque me permitiu satisfazer minha curiosidade científica pelo mundo das pequenas coisas. Logo me especializei na operação desse microscópio e, com ele, descobri um novo tipo de material que, muitos anos mais tarde, me rendeu o Prêmio Nobel.
A descoberta dos quase-cristais
Em 1981, fui para os Estados Unidos a fim de estudar materiais à base de alumínio para uso em aviões. Inicialmente, trabalhei com uma liga de alumínio e ferro e descobri uma nova fase – um arranjo especial dos átomos nessa liga. Eu queria estudá-la, mas ela era instável. Assim, em vez disso, preparei várias ligas de alumínio e manganês, que eram estáveis, em diferentes concentrações. Algumas eram úteis para aplicações na aviação e outras não, mas continuei preparando-as por causa da minha curiosidade científica. Estudei todas essas ligas de manganês-alumínio usando o MET, “o rei dos microscópios”, pois é uma ferramenta muito poderosa, com recursos incríveis. O MET nos permite ver a maneira como os átomos estão dispostos em diferentes materiais.
Na quinta-feira, 8 de abril de 1982, estava estudando uma de minhas ligas usando o MET e notei um padrão muito especial na tela. Damos o nome de padrão de difração (Figura 1, esquerda) àquele que surge quando os elétrons interagem com um obstáculo sólido, como o cristal. Imediatamente percebi que havia alguma coisa incomum no padrão de difração e, portanto, na estrutura do material, que agora chamamos de “quase-cristal”; anotei a expressão “dez vezes???” em meu caderno no laboratório (Figura 1, direita, linha 6 entre parênteses). Agora, vou explicar o que havia de tão especial nesse padrão, o significado da observação em meu caderno e por que ele revolucionou o mundo da cristalografia.
Os cristais, antes e depois da descoberta
A ciência da cristalografia (o estudo dos cristais) começou em 1912, com um físico alemão chamado Max von Laue. Von Laue foi o primeiro a enviar raios X através de um cristal e constatou que os átomos formavam um padrão de difração ordenado. No mesmo ano, dois físicos ingleses, os Braggs (pai e filho), desenvolveram uma equação matemática descrevendo o fenômeno experimental observado por von Laue. Foi assim que a cristalografia surgiu como um novo campo científico. Após o nascimento da cristalografia, muitos milhares de cristais foram estudados e todos tinham duas propriedades comuns: eram ordenados (não aleatórios) e periódicos (exibiam um padrão repetitivo) (Figura 2).
Devido a todas essas observações, a definição de cristal passou a ser: “Um material sólido no qual os átomos estão arranjados em uma estrutura fixa e repetitiva”. Exemplos bem conhecidos de cristais são os grãos de sal, as pedras de quartzo e os diamantes; entretanto, a maioria dos metais, como o cobre, o alumínio e o ferro, são também cristais. Os cristais clássicos possuem igualmente uma propriedade chamada simetria rotacional. Graças às regras matemáticas que descrevem o arranjo interno dos cristais, descobriu-se que eles podem ter simetrias rotacionais de diferentes tipos, chamados “ordens” (isto é, ordem 1, 2, 3, 4 ou 6, mas não 5 ou 10; ver figura 2, centro, para a demonstração de uma simetria rotacional de ordem 4).
Setenta anos depois do nascimento da cristalografia, descobri um cristal que era ordenado, mas não periódico. A fim de entender melhor o que isso significa, observe o lado esquerdo da figura 3. Você pode ver círculos de pontos (azuis, amarelos e vermelhos) ampliando-se ao redor do grande ponto central. Cada círculo é composto de dez pontos, lembrando uma flor com cinco pares de folhas opostas (o ponto 1 é o parceiro do ponto 6, o ponto 2 é o parceiro do ponto 7, etc.). Se você medir a distância do centro até o primeiro círculo, verá que ela não é a metade da distância entre o centro e o segundo círculo (linhas azuis e amarelas na Figura 3, à direita). Assim também, a distância entre o centro e o primeiro círculo não é um terço da distância entre o centro e o terceiro círculo (linhas azuis e vermelhas na Figura 3, à direita).
Isso significa que não podemos pegar um círculo e duplicá-lo em distâncias iguais a partir do centro e obter o cristal que eu vi: portanto, o cristal não é periódico. Mas podemos usar a matemática para descrever as distâncias entre o centro e os círculos que se ampliam: ou seja, a estrutura do cristal é ordenada, mas não aleatória. (Um desafio: você consegue encontrar a conexão entre meu cristal e o famoso quadro da Mona Lisa? A resposta está no fim deste artigo.)
Observe como os pontos na Figura 3 (esquerda) estão dispostos com distâncias idênticas entre si no círculo. Uma vez que existem dez pontos igualmente espaçados no círculo, se você colocar um eixo no centro do círculo e girá-lo em 36º (360º/10 = 36º) em qualquer direção, obterá a mesma imagem de antes do giro. Chamamos isso de simetria rotacional décupla. Como a simetria rotacional quíntupla ou décupla não ocorre em cristais periódicos (para mais informação, ver este link), aquele cristal era claramente não periódico. Por isso escrevi “dez vezes???” em meu caderno, como abreviação de “simetria rotacional décupla”. Acrescentei os três pontos de interrogação por saber que um cristal com simetria décupla nunca havia sido visto antes.
Para resumir, descobri um cristal que contradizia a definição clássica de cristal e era considerado “proibido” pelas leis físicas da época. Essa situação implicava a existência de duas opções: ou havia outra explicação para o fenômeno que presenciei, que não contradissesse as definições existentes, ou as definições existentes precisavam ser atualizadas para incluir o cristal que descobri. Na próxima seção, contarei como a comunidade científica se convenceu de que era necessária uma nova definição para o cristal.
A descoberta dos quase-cristais foi criticada antes de ser aceita
Dois anos após a descoberta, publiquei dois artigos sobre esse tópico com meus colegas [1, 2]. Milhares de pesquisadores ao redor do mundo uniram-se a nós e começaram a estudar os quase-cristais (agora, há mais de 10.000 artigos publicados sobre eles). Mas uma forte oposição também começou, conduzida pelo grande cientista americano Linus Pauling, que ganhou o Prêmio Nobel duas vezes. Pauling me atacou pessoalmente e até disse que “não há quase-cristais, há quase-cientistas”. Pauling e seus apoiadores alegaram que o que vi no microscópio era um fenômeno chamado “gêmeos” (Figura 4), no qual dois cristais são ligados um com o outro. Cada cristal é ordenado e periódico, mas, por causa da ligação, parece ter uma simetria quíntupla.
Verifiquei imediatamente se havia gêmeos em meus cristais, mas não encontrei nenhum e tive certeza de meu resultado inicial. Sabia que havia identificado um novo fenômeno e descoberto um novo material. A oposição de Pauling às minhas descobertas durou dez anos! Após a morte dele, em 1994, a maior parte da oposição à minha descoberta sumiu e abriu-se a porta para sua plena aceitação. O reconhecimento resultou em uma nova definição de cristal e, inevitavelmente, lançou uma nova luz sobre a ciência da cristalografia. Das centenas de quase-cristais encontrados após minha descoberta, alguns exibem propriedades úteis, como resistência à deterioração, e propriedades elétricas interessantes, que mudam em função da temperatura. Foram fabricados alguns produtos que usam quase-cristais , como o revestimento antiaderente para panelas da Sitram e o aço inoxidável reforçado da Sandvik.
Recomendações para os jovens cientistas
Se você deseja se tornar um jovem cientista, precisa desenvolver duas qualidades. Primeiro, tem de pertencer ao grande mundo da ciência, com um amplo conhecimento de campos diferentes, tais como a matemática, a física, a química, a biologia e a informática. Precisa saber também o que já foi descoberto, além do que é “permitido” ou “proibido” de acordo com as teorias correntes. No caso da minha descoberta, eu sabia que a simetria quíntupla era “proibida” pela definição então aceita de cristais e só fora observada em cristais gêmeos.
Todavia, conhecer as teorias existentes não basta para torná-lo um cientista de sucesso. Você terá também de se especializar. Encontre algo que goste de fazer, algo em que seja bom, algo que desperte seu interesse – e torne-se um especialista nisso. Eu me especializei no MET e, na época, poucas pessoas sabiam operá-lo tão bem quanto eu. Essa foi minha vantagem e o que me permitiu continuar confiante nos meus resultados, mesmo diante das duras críticas de Pauling.
Concluindo, lembre-se de que a vida nos apresenta muitas oportunidades e precisamos saber aproveitá-las. Lembre-se também de que a vida é constituída por uma grande variedade de elementos valiosos. Quando me perguntam sobre os momentos mais felizes de minha vida, respondo que foram os nascimentos de minha esposa, de meus quatro filhos e de meus doze netos. Espero que você também experimente a maravilha de criar vida e compreender o mundo. Desejo-lhe boa sorte em sua jornada.
Resposta ao enigma de “O que é um cristal”
No cristal que descobri, a razão entre os diâmetros dos círculos crescentes (Figura 3, à direita) é a razão áurea – um número irracional com valor igual a cerca de 1,618. A mesma proporção áurea é encontrada na face da Mona Lisa – a pintura mais famosa de Leonardo da Vinci. A proporção áurea produz uma agradável experiência de beleza para o observador. Você consegue perceber a beleza no padrão de difração que descobri?
Glossário
Microscópio Eletrônico de Transmissão (MET): Microscópio que usa um feixe de elétrons para penetrar no material que está sendo examinado. Os elétrons possuem um padrão de difração que mostra a estrutura atômica do material.
Liga: Material feito de pelo menos dois elementos, em que um ou mais é um metal.
Fase (Cristal): Um certo estado de material. Muitas vezes falamos em fases no contexto do estado do material – gás, líquido, sólido ou plasma –, mas aqui nos referimos a um arranjo específico, no espaço, dos átomos que constituem o material.
Cristal: Material sólido com blocos de construção (átomos, íons ou moléculas) dispostos no espaço de maneira ordenada.
Difração: Fenômeno no qual luz ou elétrons são espalhados quando interagem com um obstáculo, como um cristal ou outro material sólido.
Quase-cristais: Cristais com blocos de construção organizados no espaço de uma maneira não periódica, ou seja, não são duplicados em todas as direções de acordo com um padrão de repetição.
Cristalografia: Campo científico que investiga o arranjo espacial de átomos nos sólidos, entre os quais se contam os cristais.
Ordem: Padrão organizado, não aleatório.
Periodicidade: Padrão repetitivo duplicado várias vezes (no tempo ou no espaço).
Simetria rotacional: Padrão que se repete por rotações em torno de um eixo central.
Referências
[1] Shechtman, D. e Blech, I. A. 1985. “The microstructure of rapidly solidified Al6Mn.” Metall. Trans. A 16:1005-12. DOI: 10.1007/BF02811670.
[2] Shechtman, D., Blech, I., Gratias, D. e Cahn, J. W. 1984. “Metallic phase with long-range orientational order and no translational symmetry.” Phys. Ver. Lett. 53:1951–4. DOI: 10.1103/PhysRevLett. 53.1951.
Citação
Shechtman, D., (2021), “Quasi-Crystal, Not Quasi-Scientist.” Front.Young Minds. 9:22. DOI: 10.3389/frym.2020.00022.
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