Biodiversidade Ideias fundamentais 3 de janeiro de 2024, 16:59 03/01/2024

Quem são os guardiões da biodiversidade microbiana?

Autores

Jovens revisores

Ilustração de um tubo de ensaio, um conta-gotas e duas placas de observação de micro-organismos, todos dispostos sobre um fundo azul.

Resumo

O mundo está repleto de uma abundante e fascinante diversidade de vida microbiana. Os micro-organismos estão presentes em todos os ecossistemas, e contribuem para as atividades da natureza. Há século, os seres humanos estudam e aproveitam as propriedades dos micróbios, que hoje em dia são empregados em diversos processos industriais, agrícolas, ambientais e biotecnológicos. Mas onde ficam guardados os micro-organismos utilizados em pesquisas científicas ou em processos biotecnológicos? Neste artigo, explicaremos o que são as coleções de culturas microbianas, sua importância para a comunidade científica e para a sociedade, seus usos e sua contribuição para os estudos da biodiversidade e da preservação microbiana.

O mundo dos micro-organismos 

Os micro-organismos habitam a Terra há mais de 3,5 bilhões de anos [1], muito antes da existência de plantas e animais.  Eles são tão pequenos que não conseguimos vê-los a olho nu. Em geral, é possível enxergar, sem microscópico, objetos que medem 0,1 mm (ou 100 mícrons) ou mais, mas os micro-organismos são muito menores do que isso. O tamanho muito reduzido é a única característica que têm em comum várias espécies de micro-organismos – que, no restante, possuem grande diversidade quanto a estilo de vida, metabolismos e funções que desempenham no ambiente (Figura 1).

Os micro-organismo podem ser encontrados em todos os lugares, desde os polos da Terra até o equador, das profundezas dos oceanos até as geleiras das montanhas mais altas, e mesmo na superfície ou no interior dos corpos de outros seres vivos. Embora com frequência pensemos nos micro-organismos associando-os a doenças e infecções, a maioria deles exerce um impacto benéfico no meio ambiente e em nossa vida diária. Por exemplo, você sabia que as microalgas que vivem nos oceanos produzem metade do oxigênio que respiramos [2]? Os micro-organismos também enriquecem o solo, o que ajuda as plantas a crescer mais rapidamente e com mais saúde [3]. Alguns micro-organismos são usados na produção de alimentos como queijo, vinho, pão e vegetais fermentados (picles).

Figura 1. Exemplos de micro-organismos: (A) Vírus, (B) cianobactérias, (C) bactérias, (D) fungos, (E) leveduras e (F) microalgas. As barras de escala fornecem informações sobre o tamanho do organismo (1.000µm são iguais a 1mm). 

Os cientistas calcularam recentemente que a Terra é o lar de um trilhão de espécies microbianas [4]! No entanto, acredita-se que 99,999% dessas espécies ainda não foram descobertas. Devido às muitas funções benéficas que os micro-organismos desempenham, os microbiologistas estão em busca de novos micro-organismos a fim de entender o que fazem em seus ecossistemas e determinar como podemos usá-los para beneficiar a humanidade ou o planeta. Para estudar o mundo microbiano, os cientistas criaram coleções de culturas de micróbios, ou culturas microbianas, que desempenham um papel fundamental na pesquisa e preservação da biodiversidade dos micro-organismos. 

As coleções de culturas: um tesouro de micro-organismos

O que são as coleções de culturas? Como o nome indica, são coleções reais de cepas de micróbios. Na verdade, uma cepa de cada espécie microbiana já isolada é mantida em pelo menos duas coleções diferentes em todo o mundo. As coleções de culturas estão para os micro-organismos assim como as bibliotecas públicas estão para os livros. Elas atendem a três propósitos principais. Em primeiro lugar, graças ao isolamento e à descrição de novas cepas microbianas, elas ajudam os cientistas a compreender e a explorar a biodiversidade dos micro-organismos. Em segundo lugar, elas preservam as cepas microbianas que os cientistas isolaram e descreveram ao longo de muitos anos de estudo. Em terceiro lugar, os cientistas que desejam estudar ou usar uma certa cepa microbiana podem obtê-la de uma das coleções. 

As coleções existem desde que os microbiologistas conseguiram isolar e cultivar esses organismos pela primeira vez. O isolamento e o cultivo da primeira cepa microbiana foram atribuídos a Robert Koch, nos anos 1870. Algum tempo depois, as primeiras coleções de culturas apareceram na Europa, com o propósito de preservar e fornecer micro-organismos para estudos futuros. Naquela época, o isolamento de cepas microbianas era um processo muito difícil e por isso as cepas isoladas eram consideradas recursos muito preciosos, que precisavam ser preservados para futuras investigações científicas.

Hoje, graças a importantes desenvolvimentos tecnológicos, as atividades ligadas às coleção de culturas, incluindo as de coleta de amostras, isolamento, identificação e preservação (Figura 2), tornaram-se processos “rotineiros” no caso de alguns micro-organismos. Entretanto, essas atividades ainda requerem muito tempo e podem ser difíceis em se tratando de grupos de micro-organismos que ainda são desconhecidos. 

Figura 2. (A) Os micro-organismos são coletados do ambiente natural juntamente com uma amostra do habitat em que vivem.  (B) No laboratório, os microbiologistas isolam os micro-organismos da amostra proporcionando-lhes os nutrientes e as condições de cultivo de que necessitam. (C) Os micro-organismos isolados são caracterizados para se descobrir a quais espécies pertencem. (D) Para fins de conservação, os micro-organismos podem ser desidratados (como um pacote de sopa instantânea) ou armazenados em temperaturas muito baixas em freezers (-80°C) ou em nitrogênio líquido (-172ºC). 

As amostras podem ser coletadas em ambientes de acesso fácil, como a pele da mão de uma pessoa, mas também em ambientes extremos, como o fundo do oceano Antártico. A etapa de isolamento pode ser muito trabalhosa, em especial quando os microbiologistas querem isolar um tipo específico de micro-organismo entre milhares de outros de uma mesma amostra. Você sabia que um grama de solo pode conter de 100 a 1.000.000 de espécies diferentes de bactérias [5]?

O cultivo de micro-organismos é também uma tarefa complexa. Alguns tipos precisam de nutrientes e de condições de cultivo especiais. Ainda hoje, os microbiologistas só podem cultivar uma fração muito pequena dos micro-organismos que existem na Terra. Estima-se que de 60% a 99% dos micro-organismos não podem ser cultivados em laboratório [1]. A capacidade de cultivar novas espécies de micro-organismos é um dos maiores desafios para os microbiologistas atualmente! Por fim, a identificação de um micro-organismo novo demanda vasta experiência anterior, conhecimento profundo dos micro-organismos e entender sua classificação (técnica chamada taxonomia). Uma vez que é descrito um novo micro-organismo, ele recebe um nome latino e é armazenado em pelo menos duas coleções de culturas, a fim de ser preservado e distribuído a outros cientistas que desejem estudá-lo. 

Hoje, existem mais de 800 coleções de culturas espalhadas pelo mundo inteiro que, juntas, preservam e distribuem mais de 2.350.000 cepas! Se considerarmos que os primeiros micro-organismos foram isolados há menos de 150 anos, perceberemos que os microbiologistas, com suas coleções de culturas, têm trabalhado como abelhas laboriosas para isolar, caracterizar e preservar a biodiversidade microbiana. Algumas coleções de culturas estão em institutos muito grandes, com dezenas de milhares de linhagens, e outras em organizações pequenas. As coleções podem preservar cepas comuns e bem caracterizadas ou espécies muito raras, como as isoladas a partir de ambientes extremos. No entanto, todas as coleções de culturas são igualmente importantes, pois contribuem para a pesquisa e preservação da biodiversidade microbiana. 

Em última análise, toda a sociedade se beneficia das cepas e informações geradas pelas coleções de culturas públicas. Os usuários dessas coleções são geralmente cientistas-pesquisadores em universidades ou hospitais. Professores ou indivíduos podem adquirir cepas microbianas para fins educacionais se tiverem acesso a um laboratório equipado com os instrumentos e os materiais necessários. Os organismos só podem ser obtidos se não forem tóxicos ou causadores de doenças. Cepas microbianas perigosas ficam armazenadas em locais específicos e acessíveis apenas a especialistas autorizados a manuseá-las. As cepas microbianas não são gratuitas! As coleções de culturas necessitam de fundos para apoiar sua pesquisa e por isso, quando usuários as adquirem, apoiam futuras atividades nessa área. 

Coleções de culturas no século 21

Como se deu a evolução das coleções de culturas após o seu surgimento? No passado, serviam para explorar, preservar e distribuir a biodiversidade microbiana. Hoje, um objetivo adicional é expandir os benefícios à sociedade que podem ser proporcionados pelo conhecimento e pelo uso de micro-organismos. As modernas coleções de culturas são chamadas de centros de recursos microbiológicos (microbiological resource centers,mBRCs). Esse nome complicado realça a ideia de que os micro-organismos devem ser considerados recursos, uma vez que são valiosos para o ambiente natural e para o desenvolvimento sustentável de nossa sociedade. 

Os mBRCs desempenham algumas tarefas adicionais muito importantes (Figura3). Esses centros prestam serviços de apoio às atividades de pesquisa e desenvolvimento, o que ajuda a facilitar novas descobertas. Eles são responsáveis por gerenciar e compartilhar dados por meio de organização, armazenamento e troca de informações relacionadas às cepas microbianas da coleção. Também oferecem atividades de educação e formação, para ensinar a outras pessoas os meios para preservar e utilizar a biodiversidade microbiana; e, por fim, auxiliam na criação de regras para o uso da biodiversidade microbiana. 

Figura 3.  Os mBRCs ao redor do mundo desenvolvem redes colaborativas para ajudar no uso, preservação e enriquecimento da biodiversidade microbiana. Cada mBRC é especializado em determinados micro-organismos, tais como leveduras, fungos ou bactérias. Tarefas desempenhadas em cada mBRC (caixa à direita), fortalecidas pelas redes colaborativas, fornecem apoio e facilidades para a preservação da biodiversidade microbiana e o uso sustentável. 

Como os micro-organismos são recursos valiosos, foram criadas regras para regular sua exploração. Os microbiologistas devem seguir essas regras se quiserem utilizar cepas isoladas do ambiente natural para pesquisas ou fins comerciais. Por exemplo, na maioria dos países os cientistas devem solicitar uma licença especial antes de coletarem os recursos microbianos presentes no ambiente natural! Na verdade, desde 12 de outubro de 2014, existem regras específicas estabelecidas por um acordo internacional conhecido como Protocolo de Nagoya sobre Acesso e Repartição de Benefícios. Esse acordo visa a proteger a utilização de recursos genéticos e obriga os cientistas a compartilhar os benefícios desses recursos de uma forma justa e equitativa. Essas regras são muito importantes para combater a biopirataria e, também, ajudam a conservar a biodiversidade dos micro-organismos da Terra.

Você já ouviu a expressão “juntos podemos fazer grandes coisas?”. Os microbiologistas que atuam nas coleções de culturas e nos mBRCs certamente fizeram!

As coleções de culturas e os mBRCs estão desenvolvendo redes colaborativas para compartilhar conhecimentos, instrumentação, dados e recursos. Eles trabalham juntos, em nível internacional e nacional, para expandir nosso conhecimento do mundo microbiano e promover o uso de cepas microbianas em campos como ciências médicas, biotecnologia, agricultura, ciências ambientais e biodiversidade. Além disso, por meio de colaborações, eles começaram recentemente a desenvolver redes ainda mais amplas que fornecem serviços inovadores e de alta qualidade, tais como a Infraestrutura Europeia de Investigação de Recursos Microbianos, que reúne os recursos microbianos e a experiência de mais de 50 coleções de culturas europeias e mBRCs.

Grandes ou pequenas, modernas ou antiquadas, isoladas ou em equipes, coleções de culturas e mBRCs em todo o mundo trabalham continuamente para promover a biodiversidade e o uso sustentável de micro-organismos. 

Glossário

Microbiologistas: Cientistas que estudam os micro-organismos. 

Biodiversidade: Variedade de tipos diferentes de vida na Terra.

Cepa microbiana: Variante ou subtipo de um micro-organismo com características ligeiramente diferentes (quase sempre no nível genético) que os distinguem de outros membros da mesma espécie. 

Isolamento: Em microbiologia, procedimento realizado para tirar um micro-organismo (uma cepa) da amostra onde está e isolá-lo de outros micro-organismos presentes nessa mesma amostra. 

Recurso genético: Qualquer material (plantas, animais, micro-organismos ou outros organismos contendo material genético [DNA ou RNA]) com valor potencial ou existente. 

Biopirataria: Uso ou exploração de recursos genéticos ou conhecimentos sem o consentimento ou uma compensação justa para as comunidades locais que os detêm.

Agradecimentos

Este artigo foi escrito graças ao apoio do projeto IS_MIRRI2, H2020, financiado pela Comissão Europeia conforme o Grant Agreement nº 871129. Os autores agradecem o apoio dado por várias coleções de culturas e mBRCs durante a preparação do artigo.

Para as gravuras exibidas na Figura 1, os créditos vão para: Philippe Desprès, Marie-Christine Prévost e Chantal Le Bouguénec (Instituto Pasteur), e Emilio Soler Onís (Banco Espanhol de Algas, BEA). Para as gravuras exibidas na Figura 2, os créditos vão para: Waclaw Dabrowski Institute of Agriculture and Food Biotechnology (IAFB), Belgian Co-ordinated Collections of Micro-organisms, Fungi Collection: Human and Animal Health (BCCM/IHEM), Bano Espanhol de Algas (BEA), Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen (KNAW-Westerdijk Institute), Micoteca da Universidade do Minho (MUM), Marleen Bosschaerts (BELSPO-BCCM), Adrian Vila (Colección Española de Cultivos Tipo, CECT), Cecile Grondin (CIRM-Levures), Elie Verleyen (Université de Gent), Severine Le Faucheur (IPREM, Université de Pau e des Pays de l’Adour) e Bob Beattie (imagens científicas CSIRO). 

Referências

[1] Bernard, G., Pathmanathan, J. S., Lannes, R., Lopez, P. e Bapteste, E. 2018. “Microbial dark matter investigations: how microbial studies transform biological knowledge and empirically sketch a logic of scientific discovery.” Genome Biol. Evol. 10:707–15. DOI: 10.1093/gbe/evy031.

[2] Virta, L. e Norkko, A. 2021. “Do you like to breathe? Diatoms can help you with that!” Front.Young Minds 9:553748. DOI: 10.3389/frym. 2021.553748.

[3] Ariotti, C., Giuliano, E., Garbeva, P. e Vigani, G. 2020. “The fascinating world of belowground communication.” Front.Young Minds 2020:547590. DOI: 10.3389/frym.2020.547590.

[4] Locey, K. J. e Lennon, J. T. 2016. “Scaling laws predict global microbial diversity.” Proc. Natl. Acad. Sci.U. S. A. 113:5970–5. DOI: 10.1073/pnas.1521291113.

[5] Bickel, S. e Or, D. 2020. “Soil bacterial diversity mediated by microscale aqueous-phase processes across biomes.” Nat. Commun. 11:1–9. DOI: 10.1038/s41467-019-13966-w. 

Citação

Zaarour, M., Legras, J., Mistou, M. e Cheloni, G. (2022) “Who are the keepers of microbial biodiversity?” Front. Young Minds. 10:742884. DOI: 10.3389/frym. 2022.742884. 

 

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